segunda-feira

Astolfo

“Sabe, antes de te conhecer, eu achava que era muito fácil se apaixonar pela figura de alguém deitado numa cama dormindo. Deve ser essa coisa de vigília e tal, mas, meu deus, como tu ronca!”

Eu muitas vezes me pergunto qual será esse deus a quem Astolfo vive se referindo. Ele sempre me pareceu tão ateu, exceto por esse desvio de conduta, de fala. Tudo que existe nele parece vir de uma contradição ou um traço de inconformidade: esse nome rículo-antigo confrontado com a figura do garoto de 21 anos (creio eu), os sentimentos que ele declara-negacia com tanta facilidade, a dificuldade em manter uma linha de diálogo . Por algum tempo tive medo, mas cheguei à conclusão de que fui em quem procurou essa instabilidade.

“Benzinho, é por isso que eu te digo: tuas melhores declarações vêm mais de baixo.” – ele sorri daquele jeito.

“Tá com fome?”

“Eu começo a me preocupar com a tua alimentação, com essas porcarias que tu come todo dia.”

“Já sei, vamos no árabe lá na esquina.”

“Você paga, não tenho dinheiro agora.”

Parece um pacto velado: nossas conversas costumam evitar os assuntos constrangedores ou discordantes. Eu acho que a não-agressão mútua acaba por machucar da mesma forma. O mais engraçado é que isso não me incomoda, parece lógico nos afastarmos quanto mais nos conhecemos. Acho nobre enfrentar a fatalidade com um espírito sereno.


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Pro Pedro, que tava de aniversário ontem. Parabéns!

Recomecei a escrever o livro, ainda falta passar o primeiro episódio pro computador. Esse é o segundo.

Romance

Eu sinto, cada vez mais, que só sei fazer as velhas escolhas. Voltei pra ela com o coração apertado, com o mesmo sorriso encabulado nos lábios. Ela não sai desse lugar, do nosso apartamento. Suspira e chora o tempo todo, mas quem não a conhece não pode ouvir ou ver suas lágrimas.

"Amor, cansei dos vícios, de acelerar no tempo torturando as horas, cansei da saudade negaciada, do meu espírito sazonal."

"Tu não sabes, ou pareces não saber, da minha tristeza, do abandono e da inevitabilidade das tuas palavras: não te cansas."

"Parece estar congelada no teu coração a lembrança daquele momento em que te virei as costas e fugi pro mundo que teimava em desfilar à frente dos meus olhos. Ignoras as decepções e a tortura das noites em que eu só podia ouvir o barulho da nossa porta se abrindo."

"Foste tu quem a fechou."

"Não esperas, não deverias ao menos, que eu pudesse sobrepujar o canto das ruas, o fascínio da noite, a volúpia da degradação."

"És determinado, eu admito, mas de forma alguma poderei ser aquela que regozijava ao te ver entrar com um sorriso encabulado na fronte desalmada."

"Admiro a tua força, hoje e ontem. Peço, porém, que não me submetas novamente à saudade."

"Saudade o caralho!"

Ó, como são duras as mulheres magoadas!

domingo

Um Breve ensaio sobre relações

Sabe esses espelhos, não, esses vidros espelhados que a gente se vê de um lado, mas consegue ver através do outro? Peço desculpas desde já porque eu não sou um grande filósofo. Tenho lá umas teorias, talvez não sejam tão originais, vá lá, os espelhos: comecei a achar que as pessoas são assim, quando você está com elas acaba recebendo de volta essa imagem meio difusa, supondo que o vidro não seja tão bom. É meio paranóico pensar que todas as pessoas, o jeito como tu te relaciona com elas, isso seria simplesmente um reflexo de ti mesmo. Todavia, não me parece absurdo.

Aí eu comecei a imaginar que de repente, se ninguém tiver luz própria, como um encadeamento de reflexos, essa luz original acabaria por se extinguir e num dado momento tudo seria escuridão. Meio triste, apocalíptico, então decidi expandir a teoria e acreditar numa luz interior, a mesma que distorce a imagem original. Isso tudo é meio hippie, pra falar a verdade nem gosto muito dessa teoria, mas como viajei por semanas nessa porra, acabei contando tudo pro Varela.

Ele é um gordo meio careca, meio mongol – da Mongólia, sabe? Foi o único descendente de mongóis que eu conheci. Não sei como pode, achei que esse país nem existisse mais. Virou pra mim, assim mesmo, e disse: cara, vamos comprar um charuto pro teu aniversário. Foi a melhor festa que eu já tive.

Vermelho

Naquele dia, sentei inocentemente do lado de minha vó. Ela sempre foi uma senhora muito católica, mesmo no tempo em que nem era uma senhora. Virou pra mim, depois de um ano da minha mudança, e perguntou:

"Tem ido na igreja, meu filho?"

Estávamos sentados na cama. Olhei pra ela sem entender direito, só então caí em mim. Na minha cabeça, ao separar-me da minha família, essas obrigações haviam cessado. Eu lá ia acordar num domingo pela manhã pra ir à igreja de ressaca? Tenha dó! Hesitei como quem mente justamente pra mentir, ou pelo menos amenizar:

"Sabe como é, né, vó? Não tenho tido lá muito tempo, as aulas e tal. Sábado eu fico fazendo trabalho, acaba que não sobra tempo..."

"Meu filho, tu precisa ir na igreja. Fica aqui no quarto pensando, depois eu volto pra conversar sobre isso."

Pronto, me deixou de castigo. A matriarca sabia comandar as coisas, nem passou pela minha cabeça desobedecer. Estiquei minhas pernas sobre a cama e atentei pra passagem do tempo. Já sentiu? Essa vibração no ar que só quem pára e respira fundo consegue sentir? São milhares de bolhinhas que estoram, aleatoriamente, continuamente, nos pelinhos do nariz e nunca acabam. Então uma caixa se abre em algum lugar da cabeça e é só tempo, um caos ordenado seguindo o compasso irregular do coração.

"Então, meu filho, já foi na igreja?"

E que porra era essa agora?

"Vó, não foi tu mesma que me mandou ficar aqui, no quarto?"

"Sim, e eu também disse que tu precisava ir na igreja."

Apesar de fisicamente impossível, ela tinha dito isso mesmo. Fechou a porta atrás de si, me trancando com um novo problema. Eu devia ficar no quarto por não ter ido na igreja e precisava ir pelo mesmo motivo. Não havia ressalva, ou exceção, não podia ser "ou uma coisa, ou outra". Tinha de ser as duas. Na minha concepção, uma penitência impraticável. Por isso mesmo, a minha penitência.

Acontece que o quarto já nem parecia mais um quarto desses de casa, a cama era redonda, as paredes forradas de veludo vermelho. Tudo forrado de veludo vermelho. O diabo, vestindo um Armani e fumando um cubano, entrou pela parede me oferecendo um cigarro. Acendeu dizendo:

"Sabe, Chico, essa coisa de Deus, o maniqueísmo, o aborto, as drogas, os ídolos do rock, a boemia, a Boêmia, os nazistas, ..."

Acendeu de novo o charuto e olhou pra mim.

"Você parou nos nazistas."

"Então: os nazistas, os comunistas, os anarquistas, as grandes corporações, sabe? Parece que todo mundo tem a verdade na palma da mão. Amiguinho, a Verdade é uma prostituta e os progamas rolam aqui nesse quarto. Ela usa espartilhos sem calcinha, saltos finos de vinil, sobretudo de couro e um chapéu panamá. Não entende nada de estética, ou moda. Tu devia foder a Verdade de vez em quando. Ela cobra pouco, e pros chegados, nem isso."

O diabo é assim, diz coisas de mal gosto só pelo prazer. Vovó entrou meio assustada.

"Já foi?"

"Senta aqui, vó, que eu te ensino a rezar."

O diabo tragou inadvertidamente o charuto, e riu em meio a tosse.

quinta-feira

Eva

Eva, ironicamente, foi o nome da minha primeira mulher. Amamo-nos sobre seu leito matrimonial ao som de um cabeceante ventilador que negava tudo. Ela traía seu marido como quem cozinhava bolinhos; eu, por minha vez, me lambuzava. Muitas vezes mais a comi naquela cama, depois no tapete, então migramos para a sala, cozinha, um tour. No fim, cansamo-nos um da cara do outro e eu fugi numa noite estrelada sem qualquer lágrima no rosto porque não queria ver Eva fritar-me na cama com outro.

Depois disso, muitas vezes procurei no rosto de outras mulheres um que não fosse o dela, mas todas elas eram feitas de espelhos que refletiam minhas próprias memórias. Eva tinha o cheiro das outras e elas reciprocamente tinham o dela; Eva tinha o bafo das outras e elas reciprocamente e assim por diante até que vomitei numa delas para desfigurar-lhe o rosto, para inundá-la das minhas impurezas mais íntimas pois eu tinha a certeza de que esse não seria um cheiro parecido com o de Eva. Mas era.

Concluí que Eva fora para mim algo como uma marca, um cancro que coçaria eternamente nas minhas costas num lugar onde eu nunca poderia alcançar e que só curaria quando eu arrancasse aquela carne putrefata que a marca havia se tornado. Mas não haviam facas feitas dessa matéria de que são feitos os sentimentos então decidi que só algo cortante como um novo, insano amor seria capaz de expurgar de mim essa ranço. Como me apaixonaria assim, deliberadamente?

Não havia uma grande resposta para essa que talvez seja uma das grandes perguntas perguntadas por aí por pessoas assim tão desatinadas. Então, vaguei por uma cidade meio fedorenta até encontrar no meio de uma pequena viela uma preta gata desconfiada de grandes olhos de vidro por quem fortuitamente me apaixonei instantaneamente. Ela não correu, nem mesmo pestanejou enquanto eu me aproximava determinado a desvirginá-la fosse qual fosse o tamanho de seu sexo. Toquei-a com o sangue borbulhando só para descobrir a face mais cruel dos meus desejos íntimos; a preta gata não passava de um animal empalhado abandonado no meio da rua. Qual sorte de demente empalharia um animal tão ordinário quanto uma preta gata de brilhantes olhos de vidro tão lascívos, tão hipnotizadores?

Uma garota que se mantinha incógnita na densa escuridão da viela se dirigiu à mim: "Você, seu animal imundo, seu cão abandonado, você certamente apaixonou-se por Eva e agora procura na face de outras mulheres uma que não vá lhe parecer a primeira. Eu sei disso porque todos vocês, bichos do esgoto, procuram nessa viela o reflexo dos olhos da minha preta gata empalhada onde na verdade só encontram sua própria imagem. Essa libertina sabe muito bem como lhes agradar pois ela carrega nos olhos o brilho de que é feito esse mesmo brilho que ilumina os olhos dessa gata na escuridão mais densa que pude encontrar. Eu realmente espero que você apodreça e morra na frente de um espelho de banheiro batendo uma punheta infinita que leve teus ovos a secarem, assim como a tua alma."

Cai num abismo feito de paredes de vidro e enquanto caia tentei fazer a melhor careta de susto possível. Essa insanidade deve ter durado algumas horas, mas, no fim, eu já sabia o que devia fazer. Acordei na frente da casa de Eva, mas ela não deve ter gostado muito no momento em que invadi sua cozinha enquanto ela fritava bolinhos. Seu sangue esguichou alto quando arranquei-lhe os olhos com uma daquelas facas de serrinha e aqueles gritos ainda ecoam por aí. Eva chorava mesmo sem ter olhos, eu não sei como. Engoli-os e só então pude dormir.

segunda-feira

Vontades e saudades

Não fui eu quem escolheu o Maranhão, ou a Itália, os Países Baixos. Não fui eu quem construiu o muro, a casa, os tijolos eu não assei. Também não me podem culpar pelo Golfo, Panamá, Polônia ou coisa que valha. Tudo já estava assim quando eu cheguei, e não pretendo mudar, não, de forma alguma. Encho os cornos de cachaça e deixe estar.

Escolhi fumar porque não queria morrer num acidente de carro. Não dirijo, afinal, bebo. Tudo bem, eu explico. Os médicos, inimigos de tudo que vale à pena em demasia (a saber, alguns: açúcar, sal, álcool, maconha, adrenalina, gordura....), decidiram pesquisar os malefícios do cigarro só pra apertar ainda mais o cinto. Dizem, eu não conheço direito os números, dizem que, digamos, 70% dos casos de câncer de pulmão são fumantes. Isso, em nenhum nível, prova que cigarros causam câncer, mas uma incrível coincidência estatística. Portanto, aproveitando-se da inocência dos leigos, de umas duas décadas pra cá, fizeram uma campanha mundial contra o fumo. Reduziram os fumantes e os casos de câncer no pulmão. Pronto, agora eles têm a prova. Por outro lado, nunca esteve tão na moda morrer bêbado num carro (os paulistas adoram). As pessoas sempre acham uma saída, mas, no meu caso, sempre fui old fashioned.

Acendo um cigarro, Priscila me olha como se fôssemos fuder com a vida um do outro qualquer dia desses. Essa garota não devia pintar os cabelos, de forma alguma. Loiro é tão vulgar quanto uma saia jeans – das pequenas. Prefiro nem olhar quando cruza as pernas.

“Cê anda muito calado.”

“Quando sento, começo a pensar.”– Raul Seixas já dizia que quem pensa, pensa melhor parado –“Não é de bom tom falar de todas as merdas que passam pela minha cabeça.”

“Quer ficar sozinho com teus pensamentos?” – irônica, sempre com esse sorrisinho.

Tenho saudade, de vez em quando, de quando eu era sincero. Acho que foi lá pelos seis anos a última vez, no colégio. Assisti muito esses desenhos e, de uma forma ou de outra, sempre tem uma princesa e um herói. São histórias de amor, já parou pra pensar? Caí nessa ondinha. Como qual? Essa ondinha de amor. Era muito inocente na época, continuo sendo. Ela era loirinha, me liguei agora! Deixei de gostar de loiras nessa ocasião. Não tinha olhos azuis, mas era loira. Comia brigadeiro no lanche. Perguntei:

“Me dá um pedaço?” – um conquistador precoce.

“Tó.”

“Hmm. Sua mãe que fez?” – o gênio do sex appeal.

“Uhum.”

“Sabe, acho que te amo.” – a certeza é a chave, elas gostam de homens decididos.

“Eu não gosto de você.”

Descobri, então, que a sinceridade doía. Hoje, só sussurro amores pros meus cigarros, pra que eles logo queimem e apaguem.

“Vou embora.”

“Priscila, meu bem, eu te ligo amanhã.”

Priscila

Beijei-a como quem beija um tubo, um cano, uma laranja. Já não sinto mais nada, nem por ela, nem por mim. Onde foi que eu deixei meu amor próprio? Onde, meu Deus, quando eu deixei de amar? Priscila há muito tempo deixou de ser especial, banalizou-se completamente com o passar do tempo pra se tornar esse tubo que beijo com tanto ardor agora, me agarrando nela como se nas lembranças de quando eu ainda me sentia bem.

Finjo querer estar com ela aqui, finjo bem. Mas, na verdade, planejo como sair sem parecer grosso ou idiota. No final, não quero magoá-la, sempre fui um covarde. Eu não vou voltar, nunca mais, vou virar as costas e sair pra não ter que olhar na cara dela de novo.

“Tu tá estranho.”

“Senti saudade, tu demorou lá.”

“Era um congresso, demorei o que tinha que demorar. Mas também senti saudade.”

Mentira, ela não sentiu, dá pra ver. É melhor que não sinta. Olho pro lado pra não ter que continuar encarando. Eu devo ser muito volúvel.

Por que ela simplesmente não some?

“Tu continua estranho.”

Outro beijo. Cala a boca, Priscila, cala a boca e me beija. Vou procurar com a língua algo que tinha aí, devia estar entre as tuas amídalas. Eu costumava gostar de curtir assim, de beijar alguém por beijar, devia ser algo nas amídalas das pessoas. Mas as amídalas de Priscila secaram num congresso do outro lado do país, eu já não posso encontrar mais nada.

“Nossa, isso sim parece saudade. Vamos lá comer alguma coisa?”

“Tô sem fome. Priscila, querida, vou ter que ir pra casa, preciso terminar meus trabalhos, tu sabe.”

“Vamos, a gente come uma coisinha e tu pode ir pra casa pra te enfurnar no teu computador.”

“Sério, deixei um monte de coisa pra te encontrar aqui, agora eu preciso voltar.”

“Pô, só mais um tempinho! A gente não se vê já faz duas semanas!”

“Eu não te amo, Priscila.”

“Hahaha, seu idiota. Vamos lá.”

“O que tu quer comer?”

“Pode ser um cachorro quente.”

“Tá, mas tu paga a coca.”

Misógino

Foi naquela noite que eu o conheci. Meio magricela, fraquinho, mas ainda assim bonito. Entendam bem, já tinha ficado com outros, falo com certa propriedade. Acho que ele fazia meu tipo, apesar do porte. Eu não tenho muitos escrúpulos quanto a essas coisas de “tipo”, por isso digo que acho. Era bonitinho, mas é difícil alguém realmente feio aos vinte anos. Essa é outra coisa que eu acho.

Estávamos cercados de gente, ele podia sentir vergonha, mas eu encarava mesmo assim. Acabei acreditando que ele queria mesmo. Nesses momentos críticos, de tomar a decisão, é sempre aí que eu resvalo e começo a divagar. Fiquei pensando em ficar e toda essa bobagem que passa na televisão sobre pessoas que tu conhece e a efemeridade dos sentimentos envolvidos, do quão rasos nós acabamos sendo. É claro que essa opinião é baseada numa moral caduca e blá, blá, blá, quando o cara já tinha sumido por aí.

Não, peraí, tinha uma dúvida de verdade, qual era? ... depois de muito olhar pr’aquela cara magra, o que mesmo tinha despertado essa vontade? Quando tu te pergunta essas coisas significa que já passou a vontade, não é mesmo? Agora que ele tinha sumido, isso parecia tão irrelevante. Toda a construção da troca de olhares ruíra com sua breve ausência pra se reerguer quando ele voltou. Já chegou conversando comigo, com aquele sorriso besta. Eu odeio quando as coisas começam a ficar muito óbvias porque elas perdem tudo que tinham de surpreendente e novo.

De qualquer forma, como eu não esperava que ele já viesse assim, direto pra mim como que numa bandeja, fiquei. E foi bom, não dá pra negar, mas sempre falta alguma coisa. Acho que a culpa é minha, não me deixo envolver e tal, acabo nem conhecendo as pessoas com quem eu fico. Isso tira um pouco da graça, ou toda. Foi assim que, de repente, ele foi embora sem nome.

domingo

Encerra-se assim o primeiro ano

Eu tinha feito um post extremamente pessimista pro aniversário do blog, mas decidi que era muito triste. Vamos parar de reclamar, certo? Decidi fazer um post curto, como o do começo.

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Well you can play my game

If you just tell me your name

Well you can play my game

But I'll put you to shame

The Donnas

Era assim sempre que chovia. O pequeno Chico vivia esse desespero nos dias de chuva porque sempre que chegava em casa recebia uma festa surpresa de aniversário.

Eu tenho uma teoria sobre o aniversário. Bom, não é uma teoria e sim uma sensação. Sabe aquela cena dos carros correndo em direção ao precipício de “Juventude Transviada”? A sensação que eu tenho é de que James Dean aperta um pouco mais fundo no acelerador a cada aniversário, e eu sei que ele não vai conseguir saltar se continuar acelerando desse jeito.

Imaginem vocês, então, a sensação do pequeno Chico toda vez que chovia! Olhava triste para seu reflexo nas poças no caminho de volta, já esperava o pior – sim, porque de surpresa, essas festas já não tinham nada. Como pode ser “de surpresa” a rotina? Perfeitamente plausível o desespero de nosso herói, constrangido por ter que chegar em casa, sorrir com todos os dentes e sentar à mesa rodeado daquelas pessoas. Quem afinal eram elas?

O vento soprou forte naquela hora e levou o guarda-chuva. Pingos se espatifavam contra o calçamento. Os carros nadavam impassíveis nas ruas encharcadas. Um brilho surgiu subitamente nos olhos do pequeno Chico. A resposta finalmente viera a tona, tão simples, tão amável. Não voltar. Caminhar de volta pra casa era acelerar em direção ao precipício. Sem guarda-chuva, sem olhar pra trás, o pequeno Chico deixou que seus pés o guiassem.

E pegou um resfriado.

sábado

O Pedófilo

Eu, aqui, sentado nesse banquinho da pracinha, fumando. As crianças brincando nos balanços, se ofendendo e dizendo palavrão. Elas têm a coragem de quem ainda não deu de cara com a vida, melhor, de quem acabou de dar de cara com a vida pela primeira vez. Um garotinho corre, olha pra mim e corre ainda mais, parece exibir sua velocidade. Devo parecer assustadoramente velho pra eles.

“Tio, como é teu nome?”

Marina pergunta com a inocência dos seus 5 anos. É uma garota ousada, não segue os conselhos de sua mãe. Fred sorri, acha uma graça.

“Fred, meu bem. Como é o seu?”

“Tu não faz nada, tio?”

“Fico sentado aqui, olhando pra vocês.”

“Quer namorar comigo, tio?”

A pergunta soa casual. Não parece haver grande significado pra Marina, ela simplesmente não quer ficar pra trás de suas amiguinhas, pensa em chocá-las com um namorado muito mais velho que o delas, ainda por cima desconhecido. Fred finge considerar a proposta.

“Quantos anos tu tem?”

Faz cinco com a mão.

“Bom, se a gente vai namorar, tu precisa saber umas coisas. Eu acho que tu não deve fumar antes dos 18, ou 21. Dizem por aí que isso afeta o crescimento, não fica bem tu virar uma baixinha por causa do teu namorado. E a gente devia levar isso a sério, eu quero dizer, não ficar de sacanagem. Tu é uma garota bonitinha, mas não pode ficar namorando todo mundo, namorado é só um. Essa é meio que uma regra de adultos, sabe? Ah, e eu preciso saber teu nome, afinal eu vou falar contigo pelo telefone, vou precisar dizer com quem eu quero falar pra te chamarem. Ou pra endereçar as cartas, de repente falar teu nome baixinho quando eu estiver com saudade. Aliás, tu sabe jogar canastra?”

Marina já não prestava muita atenção, então ficou olhando pra ele com aquela cara de vazio. Fred não percebeu porque conjeturava mais alguns pré-requisitos. A mãe de Marina percebeu, lá de longe, a mancada e chamou a garota meio que já brigando. Marina correu de volta pra mãe pensando que era melhor começar com alguém da sua idade.

segunda-feira

Reencontro

Não é que Jair quisesse, mas sua presença sempre chamava a atenção. Dessa vez não era diferente, todo lanhado, esculachado do jeito que tava: perdera dois dentes, quebrara um dedo, os cotovelos em carne viva, a camiseta rasgada manchada de sangue, um pesadelo. Foi então que, perambulando como tava pela rua, viu Tânia.

A Tânia, nem precisa dizer, tava meio bêbada como sempre. Sentada num boteco bebendo cerveja, já foi pior. Ela avistou Jair naquele estado e, antes mesmo de se preocupar, pensou: “não pode!”, porque Jair nem era um cara que vivesse perambulando feito um doido por aí. Ironicamente, bem na hora, ele parou exatamente na frente do barzinho, cuspiu o terceiro dente, e fez menção de continuar andando. Tânia nem perdeu muito tempo:

“Ó Jair!”

Jair olhou pra ela e esqueceu que não devia sorrir. Tânia levantou devagar, tava com a bexiga meio cheia, e já foi perguntando:

“Que aconteceu contigo, porra!?”

“A gente vive se machucando, não é, Tânia? Engraçado te achar aqui, nem tava te procurando hoje.”

“Vai voltar com essa conversa, Jair?”

“Tá, me vê um cigarro.”

Tânia tirou um cigarro do bolso e deu pro Jair. Ele acendeu, tragou, e disse assim, com o cigarro na mão:

“Vamos lá pra casa e pára com essa bobagem de amante, vai.”

“Jair, já faz dois anos, tu não consegue esquecer porra nenhuma?”

“Esqueci, pronto, esqueci a porra da amante. Vamos pra casa.”

“Eu tenho uma casa, Jair.”

“Pronto, agora tem duas.”

“Tô cansada desse papinho mole, quero mais é que tu te foda!”

Virou as costas e voltou pro bar. Jair manteve a presença de espírito e gritou sarcástico:

“Tu não cicatriza mesmo, hein, Tânia!?”

domingo

Um lugar comum

Subia para o sexto andar quando ela entrou no terceiro. Nada demais, mesmo assim me chamou a atenção. O elevador é assim, pode entrar cachorro que chama a atenção, pode entrar mosquito. Não tem nada pra fazer, a não ser olhar pro mosquito. Ou pro mostrador enquanto os andares vão passando. Bom, pelo menos era uma mulher.

Eu, particularmente, não gosto de sair conversando por aí. Todo mundo tenta ser gentil quando na verdade a maioria nem é. Depois, vem aquele papinho mole de tempo, dor nas costas, estresse, o diabo! As pessoas ficam chatas quando entram no elevador, ficam mesmo.

Por outro lado, se ninguém conversa, fica aquele climinha. E daí, tu não vai ficar olhando pra cara do outro sem falar nada, também não vai assobiar. O elevador segue zunindo aquele barulhinho dos andares passando e os dois idiotas escutando pacientemente, rezando pra ninguém abrir a boca.

Não, não me acho chato, chato é o elevador, essa confrontação forçada com pessoas que tu não faz a mínima questão de conhecer.

Mas ela fez questão e foi supimpa. De repente me perguntou se eu não achava que os carros pareciam suar de noite, no inverno. Eu ri, ia fazer o quê? Ela riu também, mas eu acho que não era uma piada. Eu disse isso pra ela. Falou que odiava chegar perto do carro... é porque ela estacionava fora do edifício, não tinha garagem, ela odiava aquela água toda encima do carro dela pela manhã. Aí perguntou se eu usava a minha garagem. Achei ótimo. Respondi que guardava minha bicicleta, podia alugar pra ela. Daí veio a revelação: ela tinha lido, sim, meu anúncio na portaria e supôs – olha só – supôs que era eu o cara. Guria maluca. Mal posso esperar pra cobrar o aluguel, a gente vai poder conversar de novo.

Deuses

Era noite. Indubitavelmente, inacreditavelmente, era noite. Caíra como um pára-quedista sem sobressalente na hora da falha, estabacou-se no chão do deserto, a Noite, e, assim, esmoreceu o calor do dia sufocante nas dunas. Sem aviso, depois do fim da esperança, margeando o surreal, a Lua rodeada de Estrelas.

O pequeno Samir mal podia acreditar na sua sorte, na sorte da criatura amaldiçoada que encontra a redenção. Fora, de fato, condenado a dormir com os escorpiões por vangloriar-se, por creditar-se a divindade. Não era mentira, o garoto era um deus, um dos novinhos, mas ainda assim um deus. O Sol, porém, era muito maior e desidratara-o durante o dia, que, creio eu, fora o dia mais quente do milênio. É bem sabido que o astro é um tanto quanto invejoso – maldoso – no que tange deuses novatos.

Mas o deus-garoto agora tinha outro problema: os escorpiões. Do meio das dunas, das profundezas da areia, eles saiam à noite para escavar as carcaças abandonadas pelas criaturas do dia. Eram escorpiões enormes que não se furtariam em perfurar o corpo do pequeno Samir com suas caudas; comeriam sua farta carne com gosto. Viu-se novamente desesperançado após a esperança.

Céus, que inferno! Não o queriam por deus, não o queriam por carne, queriam-no, sim, morto por escorpiões e abandonado no deserto. Já não era um segredo de olhos calados, já havia sido verbalizado e ah!, doía-lhe na alma a certeza da ingratidão, da inveja de seu brilho. Samir-dos-olhos-brilhantes, ele era o Horizonte, o Além, o Desconhecido, e por isso, um condenado.

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continuação? será?

O Momento e o Eterno

Nunca devemos ignorar o efeito de uma pergunta certa feita na hora certa. Joana, pelo menos, não deveria ignorar o efeito contrário, principalmente pelo aspecto broxante do tópico: casamento. Com dois meses de namoro, casamento é paranóia, conspiração, absurdo, é o assunto proibido.

"Não, não rola." – responde Dado.

"Não é isso, não. Perguntei se tu pensa em casar, sabe, algum dia?"

"Meu, pára de pensar em bobagem..."

"Não é bobagem, é sério. Sabe, constituir família, filhos, cachorro, vizinhos, cadeados, igreja, carro, mensalidades, jantares beneficentes..."

"Não."

"Quê? Não o quê?"

"Não, caralho! Não penso em casar, ficar chato, não penso em nada disso. E não enche o saco."

Chato, diz Dado, talvez no sentido "plano" da palavra. Dado não pensa em ficar plano, na planeza da cama de casal arrumada, sem vincos, na placidez mentirosa da cama de casal arrumada, baluarte da relação estável, dita eterna. Não pensa, mas deveria. Isso talvez lhe desse motivos pra ter a mesma opinião. No entanto, abstém-se pela segurança radical do não-saber.

A Fúria e a Vontade de Ficar

Fúria

do Lat. furia;

s. f., acesso violento de loucura; braveza; cólera; ira; sanha; raiva; inspiração; estro; entusiasmo; fervor; pessoa furiosa; mulher desgrenhada; (no pl. ) divindades infernais, na mitologia pagã.

“Não acha amizade e amor sentimentos muito próximos, complementares até?”

Por que ele falava daquilo? Éramos amigos de antes da puberdade. Nunca tínhamos conversado sobre amor, era um assunto muito idiota pra se conversar com um menino, apesar de eu me sentir meio menino depois de tanto tempo. E, súbito, ele tomava a iniciativa e me falava sobre amor, amizade, com um intuito que me pareceu muito claro. Demorei pra responder.

“ Então, Iza, não acha?”

“Não sei nada sobre amor.”

“Eu te ensino.”

Achei ousado, principalmente quando tentou me beijar logo depois. Calou-se quando o afastei com a mão, já não tinha nada pra falar. Estávamos ali aproveitando o constrangimento para medir nossa paciência. Senti, tardiamente, que tinha feito merda. Amizade e amor são complementares, só então eu entendia. Arranquei uma grama. Foi muito rápido, a culpa era dele, não soube me dar um tempo, engolir tudo aquilo.

“Que merda, Iza!”

Levantou e foi pra casa. Acompanhei toda a caminhada, então uma tristeza finalmente me invadiu. Atinei que queria sim, que ele fazia falta e, de hoje em diante, se não me olhasse mais nos olhos, eu já não saberia distinguir a poesia da vida. Fazia uma grande previsão desconfortável pras próximas semanas.

No outro dia, no entanto, me olhou nos olhos. Ele ainda me amava, só não falava mais sobre isso.

Gelol

Qual não é o grande prazer do frio senão o de afastá-lo? Meu pé dói, intensamente, dói de andar. Esperei muito da natureza, no começo, mas ela só me deu mosquitos e um pé que dói no frio.

Os mosquitos aparecem seja no verão, seja no inverno. Deveríamos matá-los todos, nós, os homens. As mulheres também; efetivamente, a humanidade. Mas não matamos, e sabe por quê? Eles vendem. Vendem pra caralho, mata-mosquito, espanta-mosquito, nunca uma solução definitiva, que nem gelol. Nunca curaram minha dor no pé, nem com gelol. Eu deveria era parar de andar.

Eu, porém, não queria falar sobre isso. No entanto, essa banda é tão ruim que me faz divagar. Eles não tocam nada, ficam ali dizendo que vão tocar e nada. Cerveja quente e banda ruim, eu devia escutar é jazz. Dizem que tocam pra caralho nessas bandas de blues, jazz também. Não dá é pra pegar meninas. Pelo braço, com força, elas ficam moles, sabe? Com jazz não dá, nem com blues. Se a cerveja não tivesse quente, eu bebia mais, parava de sentir dor no pé, e até pegava alguém. Claro, sem blues no fundo.

quarta-feira

O Coração Seco

A primavera imprevisível, o tempo fechado da ilha. Frutas não caem dos postes, o asfalto não tem cheiro de flores. Não há qualquer climinha banal de desenhos animados, de romances, de amores infinitos da estação. Só a morte de cinco baratas que o pequeno Chico mata no caminho para fora do condomínio. Só o tempo fechado predisposto à chuva que não chove, que prefere não molhar a gente. Só a pseudo-solidão do garoto acompanhado por mais uma queridinha, do olhar blasé pro fim da rua.

“Chico, fica comigo?”

“Agora?”

“Não, pra sempre.”

“Não.”

“E agora, agora fica?” – irônica.

Beijou-a porque nada melhor pra fazer, beijou-a pra começar logo com a chuva – nada mais que o sangue destilado de nossos antepassados, do sangue dos bichos de estimação de nossos antepassados, todos afinal eram bichos. Por que tornar essa uma cena romântica? Não era, não há romance no ar úmido de proximidade marinha, do ar salgado. Morava numa ilha, na proto-civilização, morava sobre espingardas enferrujadas.

“Você não me ama.”

“Nunca amei, ou disse que amava.”

“Canalha.” – ela disse com se por dizer. Era um dia calmo, chuvoso e sossegado.

“Olha, não vamos brigar. Não amo você, nem mais ninguém, ok?” – esperava que bastasse.

Mas não basta. Nem pra mim, nem pra qualquer outro. Nem pra você. Então, porque gastar o tempo que já foi? Ela saiu porque nada melhor pra fazer. Foi embora sem dizer um tchau. Levou todos os sonhos e já não havia mais caminho ou volta.

terça-feira

Continhos Paulistanos

Conheci um skinhead perto da Paulista

Não sei que horas eram, mas já era noite. Sabe aquela parada pra beber cerveja num boteco? Então, tava lá eu com meus amigos e tinha esse careca tirando onda com os garçons. Achei engraçado, ele notou e veio puxar conversa. Lá pelas tantas:

“... é que eu sou skinhead.”

Gelei. Não que eu seja punk nem nada, mas vai saber? É como andar na beira do desfiladeiro. Tentei me segurar não demonstrar medo e falei:

“ Isso aí é vodka?”

“É, com casca de limão.”

“Dá um gole.”

São_Paulo.zip

São Paulo, pra mim, é uma cidade de túneis. Pode parecer uma metáfora à criação da vida, à renovação autofágica da cidade grande cheia de crianças e mortos. Mas falo simplesmente dos metrôs, dos trens subterrâneos que chegam gemendo a cada três minutos sem parar e da multidão de zumbis em procissão de um lado pro outro, da Paraíso pra Brigadeiro, da Barra Funda pra Sé. Passei a maior parte do tempo em trânsito por esses túneis, atravessando lapsos de pensamento hipnotizado pelo tetlec dos trilhos, o barulho engraçado que caminha pro final do vagão.

Não há experiência de paisagem, de ver as coisas passando, só uma parede que corre e se transforma numa nova estação. De repente, já é a Paulista, ou a 25 de março, a praça da Sé. Os metrôs comprimem a cidade em espaços nulos de paredes viajantes, de cabos, de lugares que não existem na lembrança do passageiro. É a maravilha do mundo comprimido em zip.


segunda-feira

Prisão

Gold teeth and a curse for this town were all in my mouth.
Only, I don't know how they got out, dear.
Turn me back into the pet that I was when we met.
I was happier then with no mind-set.
The Shins – New Slang

Vi num filme, deve ter sido num filme, que os prisioneiros molham seus cigarros com saliva pra que eles durem mais, pra não queimarem tão rápido. A experiência da prisão deve ser algo foda, a solidão, nada pra fazer, imagino que eles fumem pra caralho, ou leiam livros e durmam o dia todo. Particularmente, eu não lambo meus cigarros. Já o resto, faço sim.

Moro sozinho nesse apartamento devastado da Lima, na ponta da Lima. Bares dia e noite funcionando lá em baixo e eu aqui, fumando, lendo e dormindo sozinho. Daí me faz pensar: qual a diferença afinal? Eles presos lá, eu aqui. É uma comparação meio ingrata, fui eu quem me prendeu, então não deveria haver motivos pra reclamar. Quem tá reclamando afinal? A vida solitária no apartamento devastado não é tão decepcionante assim.

Quando tem jogo, pra falar a verdade eu não torço, mas quando tem jogo junta uma porrada de gente nos bares. Do sétimo andar, dá pra ouvir a ovação a cada gol. E toda noite, uma velhinha costura pra fora na janela aqui do lado. Ela me olha escrevendo, eu olho pra ela costurando. Não nos conhecemos, eu cogitei ir fazer a barra das minhas calças lá com ela. Acho que ela me odeia. Tem sempre a cara fechada, assim, parece raiva. Uma velhinha que odeia as pessoas através da janela do seu apartamento, devo ser meio assim.

Tem mais uma coisa com o isolamento: sinto vertigem ao sair daqui. Moro sétimo, notou? É muito alto. Ao abrir a porta, o chão do corredor some, tudo some, uma porta que dá no nada. Vontade de chorar. Claro que me jogo no vazio quando preciso de cigarros, mas nem pensar ir torcer pro grêmio. Não gosto de jogo de futebol mesmo.

Ah, recebo visitas todas as manhãs, são os passarinhos que vêm me acordar. Eles pousam no parapeito e ficam cantando até em levantar e enxotá-los. Odeio acordar cedo. Eles insistem que eu deveria sair, tomar um ar. Ora, minha porta dá no nada, tomo ar sempre que abro a porta. Não, na verdade, falta ar. Deve ser o cigarro.

quinta-feira

Trágico

O garoto realmente achava que era um cachorro.

“Se tu cheirar meu cú de novo, te encho de porrada!”

Mas ele não era, não. Eu acho, na verdade, que era um garoto normal, tão animal quanto os muitos outros por aí, um pouco mais excêntrico, mas dá na mesma. Não era como se ele fizesse tudo por um biscoito scooby, era absolutamente ordinário nesse sentido. Eu diria que ele materializava algo tipo a grande dicotomia: razão e instinto, ou coisa parecida.

Tudo bem, vamos à história. A vida de cachorro impedia-o de certas atividades triviais, por exemplo: ir à escola. Isso chateava um pouco sua mãe, mas ela tentava preencher essa lacuna incumbindo-o de algumas tarefas: buscava leite na venda, lavava a louça, pendurava a roupa e por aí vai. O mais irônico, creio eu, era o fato de levar o cão pra passear. Na mente do garoto, era como reunir-se com os amigos. Mais legal ainda, pra fazer pose, o fato de latir em inglês:

“Wooof!”

Porra! Quem late assim no Brasil? Só garoto latia. Então, certa vez, nessa volta com os amigos, todos animadaços e curtindo altas brincadeiras no meio da estrada, olha só!? Já até sabe, num é? Foi atropelado, que nem cachorro. Um Volvo, enooorme! Não sobrou muito, não. Também não é uma história muito longa. Mas se vocês querem saber mesmo, só foram achar ele dias depois. A mãe bem que avisou: não vai muito longe de casa. Ele foi.

quarta-feira

O escritor faminto e o mundo zipado

Observo o mundo comprimido dentro do olho mágico. Aparentemente, o corredor só é habitado por uma samambaia podada e por um quadro curvo de recados. Dentro do olho mágico, o corredor parece um longo e calmo caminho até o vizinho. Lá no fundo sua porta se contorce para caber num espaço exíguo.

Ao girar a chave, trinques e traques soam. Tão mágica quanto o olho, ela destranca a porta que se abre como a capa de um livro iluminado por lâmpadas econômicas, liso como um piso recém lavado cheirando a pinho. Eu não devia estar saindo, não devia mesmo. Ele pode estar por aqui, aquele homem rude, sua cabeleira inconfundível, desgrenhada como se louco, como se faminto. Embora não tenha ofendido sua família, nem mesmo saiba seu nome, ele inexplicavelmente quer me matar.

Ouço um estalo, uma porta batendo. Não preciso caminhar ou ouvir passos, não preciso feder ou sentir seu cheiro, não preciso sorrir ou vê-lo sorrir num último momento precedente à violência fatal de sua mão, porque antes mesmo da visão de sua ameaçadora figura posso transcender meus sentidos e saber, simplesmente: quem entra no térreo é o homem desse livro maldito que narra minha morte. Meus sentidos, no entanto, também não negam sua presença; minhas pernas, essas sim, negam-se ao movimento. O instinto torto do homem civilizado que sabe aceitar a hora da sua morte.

Então o estouro, o estrondo de um livro de mil anos que se fecha. Do bolso do seu casaco uma chama expande-se em slow motion liberando o fedor inconfundível de pólvora e milhares de partículas ínfimas de chumbo incandescente. Uma miríade me leva por uma viajem nos limites da consciência.

Oh it´s one for the money
Two for the show
Tree to get ready, now go cat go!
But don´t you
Step on my blue suede shoes
Oh, you can do anything
But lay off of my blue suede shoes

Através de cores iridescentes, o leão dos olhos de mosca fala:
“O Sr. Durdan manda lembranças.”

Quem?
Já não importa.

terça-feira

O Jardineiro e a Mão do Diabo

Isso, definitivamente, é uma 45. Uma pistola de fabricação israelita, de forma que eu nem quero imaginar o tipo de munição que esse cara usa. Não quero imaginar também que essa merda atravessou o Mediterrâneo e o Atlântico pra vir encostar seu bocal na minha têmpora.

“Cadê o pó?”

E eu lá sei onde anda o pó!?

“Cadê o pó, filho-da-puta, CADÊ O PÓ!?”

Ele me chuta pra longe, continua com a arma apontada na minha direção. Seus olhos estão injetados, vermelhos, sua respiração ofegante. Sua feito um porco, fede como um, o cabelo encaracolado completamente desgrenhado, o cigarro na boca, a camisa de flor aberta expondo toda a flora escura do seu peito. Não existe qualquer glamour em ser um assassino. Ele se aproxima e chuta novamente, na cara, eu cuspo sangue e um dente. Minha boca lateja.

“Se tu me matar, nunca vai saber!”

“Pois deixa eu te dizer uma coisa: morrer é a última coisa que pode te acontecer.”

Ouço o estampido, o baque surdo da mão do Diabo. Pólvora, faíscas, fumaça. Sangue, meus dedos se desfazem em sangue. Uma rosa cálida forma-se no chão em seu lugar, olho pra ela num último instante antes da dor, no último segundo de surrealidade antes das sinapses devastadoras.

“AAAH! CARALHO!”

“Malditos policiais, sempre dando uma de durões. Agora, você ainda tem três membros, eu ainda tenho três horas. Temos um acordo?”

“EU NÃO SEI, pelamordedeus, não sei. O Alemão e o Careca levaram tudo hoje... levaram de volta pro morro, eu juro.”

Ele pisa na ferida aberta.

“Jura é, mesmo?”

“JURO, juro, ju...”

Então estoura pela última vez o baque surdo, a mão do Diabo.

segunda-feira

Era uma vez...

..., assim, uma fada de vidro. Bem, não toda de vidro, só as asas; também não era UMA fada de vidro, era A fada de vidro. Sacaram?

Tá, supimpa, a fada das asas de vidro. Acontece que os amiguinhos que entenderem de física vão concordar comigo: uma fada com asas de vidro simplesmente não voa, não pode, não com essas asas de fada. Esse, enfim, deve ser o dilema da história. Não, não é.

Uma vez bem polidas e sob um ângulo que varia com o horário do dia, as asas da pobre fadinha possuíam a capacidade de incendiar mato seco. Isso tornava-a um perigo iminente pros seus coleguinhas habitantes da floresta, logo, na intenção de prevenir acidentes, a pobre fadinha vivia com suas asinhas sujinhas. Não é horrível? Uma fada que não brilha? Parafraseando um desses poetas comunistas*: fada é pra brilhar!

Esse era o real motivo pelo qual a fada não voava, pois, na verdade, é bem sabido na comunidade da Floresta do Mato Seco que as fadas só voam por causa do efeito foto-elétrico. A luz levanta-as do chão, não aquele pózinho... qual mesmo? O da Sininho? Tá, supimpa, ela não voava. Não é algo que vá causar grande comoção. É, é sim.

Afinal, fada é pra voar! E a porra da fadinha das asinhas de vidro não tinha qualquer outra habilidade. Ela não abençoava recém-nascidos, não dava pó para criancinhas, não pagava por dentes, nem nenhuma dessas contribuições das fadas para o avanço do mundo capitalista ocidental. O que aconteceu então foi extraordinário: a fadinha quebrou suas asas, caiu de uma goiabeira e quebrou suas asinhas. Não é maluco?

Naquele dia, quando levantou-se após a queda, juntou os cacos e deles fez um espelho. De uma hora pra outra, os animais da comunidade podiam ver-se deformados na limpidez dos cacos colados. A fadinha, por sua vez, cobrou um entrada dos bichinho e ficou tudo na boa.


*Maiakovski, ou algo semelhante.

quarta-feira

Porfírio

Dizia-se, até pouco tempo atrás, que Deus anotava todos os pecados da gente num enorme livro que ele conferia no dia de nossa morte. Balela! O serviço foi terceirizado durante o episódio com Caim naquele monte... como era o nome? Bom, tanto faz, importante é que depois disso o Santíssimo cansou a munheca e decidiu fazer um departamento de anjos para anotar em livros separados as peripécias de cada homem. Então veio a modernização, os fichários, os computadores, a burocracia e, finalmente, a propina.

Foi numa dessas que Porfírio recebeu a luz. Andava rente ao muro do cemitério naquela noite nublada quando um facho de luz despencou do céu bem na sua frente. Ajoelhou de pronto. Um anjo pousou bem ali com um capote sobre os ombros e um chapéu de feltro cobrindo o rosto.

“Puta que pariu, Deus seja louvado!”

“Cala a boca! Não blasfema que ele acorda!”

“Ãhn...”

“Negócio é seguinte: eu quero três brigadeiros, duas cocadas, um pacote de Free e uma caixa de Skol lata. Se tu trouxer tudo direitinho, apago todos teus pecados nos arquivos do Céu, vão poder até te beatificar!”

“Como é que...”

“Rápido, animal!”

Porfírio correu o quanto pode até o supermercado e comprou tudo direitinho. Voltou com duas sacolas, trouxe até umas bolachas. Quando entregou tudo pro anjo, ele falou novamente:

“Atravessa a rua, rápido!”

Sem duvidar, Porfírio virou pra estrada e tropeçou no meio fio. Caiu com a garganta numa garrafa quebrada.

“Te vejo em dez minutos, camarada.”

sábado

O Dilema

Maria Antonieta olha para Gustavo Alberto com rancor. Não pode acreditar que ele mandou-a calar a boca, ela, a mãe de seus filhos, a mulher a quem ele jurou amar por toda a vida.

“Maria Antonieta, você é a mulher a quem amarei por toda a minha vida, a mulher com quem decidi me casar, mas hoje terei que por à prova todo esse amor que me prometeste em frente ao padre. Vou lhe revelar algo de uma imoralidade profunda, o segredo guardado dentro de mim por todo esse tempo decorrido nesta linda casa comprada com o dinheiro de nossos falecidos pais...”

“Ó, fale Gustavo Alberto, não maltrate esse coração que te ama para sempre, afinal dividimos tantas angústias, tantos medos. Principalmente quando meus pais foram assassinados por Roberto Aguilar, inimigo da minha família há gerações. Aquele velho maldito, mesmo sobrevivendo numa cadeira de rodas e à base de respiradores, mesmo assim ele teve a capacidade de dar sua última ordem fazendo com que meus pais morressem antes do seu próprio alvorecer...”

“Maria Antonieta, minha adorada, não me lembre desses momentos tão aflitivos, quando Puppy foi atropelado pelo veículo de fuga daqueles malfeitores e jazeu no asfalto com sua vermelha lingüinha de fora, agonizante e ensangüentado. Ó, mas eu daria milhares de Puppy’s para poupar-me da triste missão de revelar-te o segredo horribilíssimo que carrego junto das minhas aflições, o mais pesado delas, aquele cujas conseqüências temo até a medula dos meus ossos...”

“Não, Gustavo Alberto, temo eu por nosso relacionamento até hoje tão feliz; exceto pelos momentos escuros que sucederam a morte de Puppy no asfalto cinzento da frente da igreja no dia do nosso casamento, o mesmíssimo dia em que o sangue de meus ascendentes foi derramado sobre o mesmíssimo asfalto onde foi sepultado o último suspiro de nosso cãozinho tão companheiro que numa última investida pulou na frente do Santana negro de nosso algozes...

“Ó, Maria Antonieta, é exatamente sobre isso que devo confessar-te: eu atirei Puppy contra o pára-brisa do Santana!” (TAM-NAM) “Não agüentava mais aquele puddle de merda!”

“Ora, seu viadinho filho-da-puta!”

domingo

Eva

Eva, ironicamente, foi o nome da minha primeira mulher. Amamo-nos sobre seu leito matrimonial ao som de um cabeceante ventilador que negava tudo. Ela traía seu marido como quem cozinhava bolinhos; eu, por minha vez, me lambuzava. Muitas vezes mais a comi naquela cama, depois no tapete, então migramos para a sala, cozinha, um tour. No fim, cansamo-nos um da cara do outro e eu fugi numa noite estrelada sem qualquer lágrima no rosto porque não queria ver Eva fritar-me na cama com outro.
Depois disso, muitas vezes procurei no rosto de outras mulheres um que não fosse o dela, mas todas elas eram feitas de espelhos que refletiam minhas próprias memórias. Eva tinha o cheiro das outras e elas reciprocamente tinham o dela; Eva tinha o bafo das outras e elas reciprocamente e assim por diante até que vomitei numa delas para desfigurar-lhe o rosto, para inundá-la das minhas impurezas mais íntimas pois eu tinha a certeza de que esse não seria um cheiro parecido com o de Eva. Mas era.
Concluí que Eva fora para mim algo como uma marca, um cancro que coçaria eternamente nas minhas costas num lugar onde eu nunca poderia alcançar e que só curaria quando eu arrancasse aquela carne putrefata que a marca havia se tornado. Mas não haviam facas feitas dessa matéria de que são feitos os sentimentos então decidi que só algo cortante como um novo, insano amor seria capaz de expurgar de mim essa ranço. Como me apaixonaria assim, deliberadamente?
Não havia uma grande resposta para essa que talvez seja uma das grandes perguntas perguntadas por aí por pessoas assim tão desatinadas. Então, vaguei por uma cidade meio fedorenta até encontrar no meio de uma pequena viela uma preta gata desconfiada de grandes olhos de vidro por quem fortuitamente me apaixonei instantaneamente. Ela não correu, nem mesmo pestanejou enquanto eu me aproximava determinado a desvirginá-la fosse qual fosse o tamanho de seu sexo. Toquei-a com o sangue borbulhando só para descobrir a face mais cruel dos meus desejos íntimos; a preta gata não passava de um animal empalhado abandonado no meio da rua. Qual sorte de demente empalharia um animal tão ordinário quanto uma preta gata de brilhantes olhos de vidro tão lascívos, tão hipnotizadores?
Uma garota que se mantinha incógnita na densa escuridão da viela se dirigiu à mim: "Você, seu animal imundo, seu cão abandonado, você certamente apaixonou-se por Eva e agora procura na face de outras mulheres uma que não vá lhe parecer a primeira. Eu sei disso porque todos vocês, bichos do esgoto, procuram nessa viela o reflexo dos olhos da minha preta gata empalhada onde na verdade só encontram sua própria imagem. Essa libertina sabe muito bem como lhes agradar pois ela carrega nos olhos o brilho de que é feito esse mesmo brilho que ilumina os olhos dessa gata na escuridão mais densa que pude encontrar. Eu realmente espero que você apodreça e morra na frente de um espelho de banheiro batendo uma punheta infinita que leve teus ovos a secarem, assim como à tua alma."
Cai num abismo feito de paredes de vidro e enquanto caia tentei fazer a melhor careta de susto possível. Essa insanidade deve ter durado algumas horas, mas, no fim, eu já sabia o que devia fazer. Acordei na frente da casa de Eva, mas ela não deve ter gostado muito no momento em que invadi sua cozinha enquanto ela fritava bolinhos. Seu sangue esguichou alto quando arranquei-lhe os olhos com uma daquelas facas de serrinha e aqueles gritos ainda ecoam por aí. Eva chorava mesmo sem ter olhos, eu não sei como. Engoli-os e só então pude dormir.

sexta-feira

Florianópolis

O vôo São Paulo-Porto Alegre não faz escalas em Florianópolis, passa tão alto quanto se pode passar. Lá de cima, um garoto olha para baixo impressionado com a pequena linha que liga a ilha ao continente - diria que do outro lado do mar existe um universo paralelo, tão tênue e frágil ela lhe parece.
O pequeno Chico abre seus olhões endurecidos pela fuligem de alguma outra cidade e, diante de um recente viaduto, pergunta-se onde vão parar os mendigos recolhidos na Beiramar. Não consegue imaginar uma capital sem pobreza, uma faculdade sem um estacionamento grande ou um apartamento limpo e livre de baratas.
Ana toma banho quando nota a invasão de milhares de mosquitos pela basculante do banheiro. De uma hora pra outra, já não consegue mais respirar afogada num mar de insetos sanguessugas. Milhares de olhos minúsculos perscrutam seu corpo nu em busca da veia definitiva que lhes alimentará pela vida toda. Morre afogada no banheiro.
Na beira da praia, Bruno vê o mar recuar pra longe e logo lhe vêm a cabeça imagens de um grande Tsunami que devastou o Oriente há bem um ano. Mas é tudo uma questão de perpectiva, pois não é o mar quem recua, e sim a areia quem avança grão sobre grão, num multiplicar incessante, pululante, fervente. Tão logo quanto possa perceber, ele se vê afogado num monte ainda quente de areia.
Olhos endurecidos e vozes caladas na treva asfixiante.
Cores semi-apagadas.
O garoto voa para muito longe na noite carente de estrelas.

terça-feira

Não sei amar

Na primeiríssima hora em que meu olhar cruzar o teu
Já não haverá mais motivos para chuva
pois esse será o final das festividades
do começo da primavera

Não haverá motivos para horror
quando despontar o brilho da estrela primeira
num ponto longínquo da imensidão condensada no teu olhar

Ou mesmo os próprios motivos serão todos fúteis demais
E os viraremos de ponta-cabeça
e de novo
sem saber afinal porque existiam

Nesse particularíssimo momento
Eu já não saberei viver fora da grandeza marítima
do verbo amar

Já não saberei viver tão visceralmente
como nunca soube
Tanto que, na verdade, não terei nada
que valha à pena te entregar.

quarta-feira

Espero não decepcioná-los demais com um poeminha.



Tinha prometido
não escrever poemas ou ter motivos pra chorar
mas meus dedos confusos
não tem olhos nem ouvidos
muito menos coração
Escrevem sem parar
pra me mostrar quem é que manda

Eles não escrevem sobre campos floridos
amores saciados
dias ensolarados de verão

Meus dedos confusos
só sabem falar da solidão noturna de um jovem chorão
só sabem reclamar dessa vida que levam comigo
Uma sem campos floridos
amores saciados
ou odiosos dias ensolarados de verão

A viela sem fim

Melissa chegou as seis em casa. Jogou um cigarro na pia só pra ouvir o breve som agonizante da chama que se apaga. Pensou que a vida era como a chama do cigarro, mas afastou rapidamente qualquer outro pensamento funesto. Eram seis da manhã, seis da manhã, e tudo que restava era o prazer que talvez ela pudesse proporcionar a si própria.

Pegou seu celular e tentou olhar a vida sob os olhos míopes do aparelho. Era escuro como uma rua sem saída, como a viela infinita dos seus sonhos. Neles, ela corria sobre o cascalho com os sapatos nas mãos. Preferia não dormir a ter que sonhar novamente com a porra da viela.

Encheu o bule de água. Ia fazer um café pra não ter que dormir hoje. Pegava às sete e meia no trabalho, se caísse no sono fatalmente faltaria. Infelizmente, não havia pães na despensa – um armariozinho sobre a pia. Comer talvez fosse o grande erro, assim como passar a noite enchendo a cara e agüentando cantadas furadas na mesa do bar.

Durante esses anos todos, chegara a conclusão que nenhum homem era sincero, nenhum deles admitiria que só queria sexo. Por que preocupar-se? Por que não jogar o jogo? O bule chiava. Encheu um coador de café em pó enquanto aquele cheiro espalhava pela cozinha. Passou o café letárgica, sentou-se à mesa, adoçou e adormeceu pra sempre.

sexta-feira

Título

Era uma vez um garoto que queria ser escritor, mas ele era muito preguiçoso, então seus contos ficavam muito curtos. Sua professora de redação vivia lhe dizendo: "No mínimo vinte linhas", ou "Hoje vamos nos esforçar, trinta linhas." Não dava.
Um dia, desanimado, o garoto passou por um cinema ao voltar pra casa. Um cartaz na frente dizia: "Hoje mostra de curtas nacionais." Pensou com seus botões que se existia gente que não conseguia escrever um filme grande e mesmo assim fazia sucesso, ele faria com contos curtos. Isso mesmo! Seria o fundador de uma nova escola literária, os curtistas.
Seu sonho não durou muito. Ao chegar em casa, leu numa revista que alguém já tinha lhe roubado a idéia. Os canalhas tinham, inclusive, a capacidade de escrever contos com quatro linhas.
Pensou então que poderia inovar fazendo algo espetacular, como uma bola gigante de chiclete. Em menos tempo ainda descobriu que, de fato, também já tinham feito isso.
Indignado, não quis pensar em mais nada. Chegou a conclusão que todas as idéias boas, e muitas bastante ruins, já tinham sido roubadas. Inclusive essa.
No final, fez um blog e se formou em matemática.

quarta-feira

Homens

Foi no terceirão que eu conheci a Maysa.

Sim, essa é uma história de paixões frustradas, intelectuais precoces tímidos e planos idiotas. Não consegui fugir do ordinário.

Foi no terceirão que eu conheci a Maysa.

Porra! Como eu ia deixar de escrever uma história sobre a Maysa? Ela tinha aquele jeito, sabe? Tipo campanha do sabonete Lux - "eu sou uma diva!" Era, simplesmente, irresistível, principalmente pra uma criatura mal-formada que ainda sofria com os resquícios da puberdade como eu.

E eu era um cuzão. Talvez ainda seja um pouco, mas na época era cabal: um baita cuzão! Só o fato de me sair bem nas matérias já era motivo suficiente pra me crucificarem de cabeça pra baixo - e eu tenho certeza que era o plano pra formatura. Imaginem vocês qual era a minha esperança de um dia conversar com aquela montanha de status? Aliás, talvez aí more um dos segredos da atração exercida pelas mulheres: status. Afinal, o que é uma Ferrari sem a loira do lado? Acho que o mundinho dos homens muitas vezes é raso como uma piscina de 1000 litros. Nem futebol, nem cerveja, nem carros, simplesmente mulheres. Quanto mais atraente, melhor.

Daí as pobrezinhas ficam se matando em salão de beleza, pedicure, manicure, cabeleireiro, chapinha japonesa, lipoaspiração - viram a nova técnica? - silicone, chega a dar dó! E o pior, dizem que não é pra nós - "Mulher se arruma pra mulher, homem nem nota!" Realmente, é tanta coisa que acaba fugindo do nosso universo. Mas, e a Maysa?

Pois é, tava lá eu sentado atrás da Maysa. Foi estranho, a primeira vez que ela prestou atenção na aula, simplesmente não se mexia. Já era quase metade do primeiro período, ela fez um movimento meio convulsivo, como quem vai virar pra trás e não vira. Confesso que fiquei meio nervoso. Sei lá, a proximidade podia estar deixando ela irritada, de repente nauseada. Mas não, ela virou pra mim, totalmente corada, e pediu minha borracha.

Pensei comigo: "Ãhn!?", mas emprestei. Não consegui falar nada, parecia um desvio na linha do tempo, uma nova dimensão. Que Maysa era essa, corada? Como assim, vergonha de mim, de falar comigo? Realizei que Maysa era tímida. Mais, ela gostava de mim - tadinha, devia ser o sol. De uma hora pra outra, então, Maysa tornou-se um ser ordinário. Caiu de quilômetros de altura para o meu nível. Porra! Apaixonar-se por um merdinha como eu? É muita baixeza. Maysa era menor que a tomada da TV.

No fim da aula, Maysa não devolveu minha borracha. Ela talvez quisesse que eu pedisse de volta, só pra poder falar mais um pouquinho comigo. Fui embora, mas não cheguei em casa antes de passar na papelaria.