segunda-feira

As Moabitas


A raça maldita dos moabitas infesta a Terra já há muito, desde o incesto culposo das filhas de Ló, logo em seguida do fim de Sodoma e Gomorra - que por sinal também resultou na metamorfose de sua mãe em uma estátua de sal. Pode-se reconhecer um moabita pelo suor oleoso que brota de sua fronte em dias de calor durante as meias estações. O mesmo recende à dama-da-noite, muitas vezes denunciando a presença de sua influência maligna, e que evidencia a ligação de sua existência com a morte e o sombrio.

Carol traz no sangue o traço há gerações filtrado de sua ascendência malévola. Seu suor de miscigenada exala uma infinidade de cheiros, mas mesmo assim um sommelier ou um basset poderiam indicar com facilidade a presença da famigerada flor. Nos momentos de raiva cega, nota-se a mudança de tom de sua íris, que de castanho passa a castanho escuro. Ou talvez seja só o calor do momento, sei lá.

A verdade é que Carol, já faz um tempão, nem me liga. Ela, que disse que não ia me abandonar, sempre deixando recados na geladeira e trazendo o pão quente no fim do dia. Talvez seja determinista por demais afirmar que essa atitude derive diretamente de sua linhagem, mas eu prefiro culpar Ló e o vinho do que minha bela Carol. Nunca antes conheci uma Moabita de olhos tão castanhos, cabelos tão suavemente encaracolados e uma pele tão... macia. Espero que ela tenha perdido os dedos pra justificar não ligar há tanto tempo.

Mentira.

É de amplo conhecimento que os Moabitas surgiram na região onde hoje se encontram a Palestina e Israel, e também que o povo constituinte do então reino não passava, no início, de algumas tribos nômades*. Como eles, Carol transita entre oásis e faixas extensas de deserto - metafóricamente, digo. Eu, que sou o sedentário, fico aqui, no oásis, esperando que ela se canse e pare de viajar. "Esperando", é claro, quase como esperança.




*Essa informação, e bem possivelmente outras, não tem qualquer base em pesquisa. Foi tudo muito superficial e tal.

quinta-feira

Absalom



http://en.wikipedia.org/wiki/David#Bathsheba_and_Uriah_the_Hittite


Existe, no fundo deste salão, sob as claras abóbadas engessadas, engastado num pedestal, um segredo. E, revelado este segredo, revelar-se-á outro, e outro, até que não haja segredos e então se faça a luz. Mas enquanto caminho sobre este tapete de motivos alienígenas, não há pedestal lá no fundo, e as colunas parecem se abrir conforme alcançam o horizonte como se eu caminhasse no sentido errado, ou houvesse um fluxo em direção à outra extremidade.

Você, que caminha comigo, já observou estas coisas? Já teve a dúvida e olhou para seus pés na ânsia de descobrir se são eles que empurram para trás o chão ou o chão que os impele para frente? Somados ambos, não estaríamos parados?

Não, não estamos. Você se lembra, eu sei, de quando ainda no jardim podíamos dar a volta na construção. Naquele tempo eu podia pressentir tuas indagações e mesmo que você insistisse em perguntar já não havia como responder.


Davi sentou-se no chão para descansar. Ele sabia que não havia como voltar, que Betsabá já se cansara de caminhar e que as colunas, por mais que sumissem, não revelariam coisa alguma. Ela, por sua vez, mirou Davi com um sorriso nos lábios e soube que o pobre homem já não tinha os miolos de outrora. Segurou-lhe a mão, pousou nos dedos um beijo seco e apoiou-se na coluna a seu lado.

"Querido, lembre de Uriah e como você armou para que o abandonassem no campo de batalha a sua própria sorte. Havia respostas naquela época, ou todas elas eram pedaços de pequenas verdades que você coseu juntos e transformou num reino?"

"Tudo aquilo que é, simplesmente é, meu bem." - e acendeu um cigarro.

Betsabá sentia falta do hitita vez que outra, mas não arrependera-se da escolha. Seu único remorso era o filho natimorto. Davi ofendera Deus e ele lhe matara o filho, como haveria de matar o seu próprio anos mais tarde. Havia algo na providência divina muito intrigante, cruel, e incrivelmente arbitrário.

Todas as verdades de Davi pareciam incrivelmente arbitrárias, seu Deus, seus julgamentos, suas provas e sua lógica derivava daquilo que "simplesmente é". A traição de Uriah era mais uma de tantas que desembocavam na providência divina e seu mau-humor selvagem. Já não havia o que fazer.

"Passa o maço."

"Ó."

"Estou grávida de novo."

"Esse, a gente pode chamar de Absalom."