terça-feira

Possibilidade

É revirando o começo da história que talvez o final comece a fazer sentido. Há, no entanto, algo de intraçável em toda história, e por mais registrada que seja, talvez o importante sempre se perca.

Quando Leila acordou na cama de Astolfo, naquela primeira vez, seu celular despertara muito depois do garoto se levantar e batucar em seu teclado. Resmungou um algo de intragável e comestível, sentia um gosto forte de nicotina nos dentes, como gato morto. Astolfo estava feliz e recontava os passos até a cozinha na esperança de diminuir o tempo. Recolhia o lixo como um bom idiota. Lavava a louça com um sorriso besta.

Leila sentia uma puta ressaca e mesmo assim esticava a mão em direção ao maço. Quando foi que nos conhecemos mesmo? Ao que tudo indica, as impressões de Astolfo sobre a memória de Leila falhavam. Não lembrava sequer de ter fumado catorze cigarros enquanto jogavam sinuca, apesar de tê-los contado. E guardou a última ficha na bolsa, como sempre fazia pra ter lembrança de seus primeiros encontros: figurava em sua casa, na última prateleira da estante de seu quarto, uma baderna de badulaques cujo o significado irrastreável, porém latente, os mantinha intactos. Aquela última ficha viria a se perder afogada naquela prateleira até a derradeira mudança quando rolaria para fora pela janela.

Da mesma forma, Astolfo defenestraria sua chave para trancar pra sempre os dois dentro de seu apartamento, mas manteve alguma dignidade e reclamou do cigarro de Leila, pois não queria voltar a fumar e ela tornava tudo mais complicado. Leila sabia tornar as coisas complicadas, e começou a maquinar para se manter afastada de Astolfo, mas talvez não seja isso. Leila, quem sabe, quisesse que ele jogasse aquela chave fora; ou, pode ser, estava pouco se fudendo; não podia, talvez tivesse filhos em Jacarepaguá. Mesmo naquele momento, a verdade já estava perdida. Hoje, qualquer um dos dois sequer lembra de ter acordado.

No ônibus.

Você sentou no meu lado, como há muito, e por um instante pareceu querer o passado, mas só estávamos sozinhos e só isso. Estiquei o fone direito e você plugou no seu ouvido, a música fluiu em ambas as direções, não como uma ligação entre nós dois, mas um algo externo que compartilhávamos.

“Costumávamos nos sentar lado a lado.” – você disse e seu braço deslizou no meu instintivo-acidentalmente. “Mas agora você senta aí sozinho e tem todas as mulheres disponíveis e todas as possibilidades tão disponíveis como nada que possa nos aproximar.”

“Se for assim, você também está disponível.”

“Tudo é tão lógico, não?”

“Não, há tudo o mais que não faz sentido e não pode ser dito. Você está bem?”

“Sinto uma dor nas costelas, como se curvassem pra dentro.”

“Volte a respirar porque assim você se infla e elas voltam pro lugar, voltam a serem costelas. E tente parar de se culpar.”

“Nesse caso, vou ter que te culpar.”

O ônibus pára, o fone cai no banco, poc, e ela desce deixando pegadas sonoras no chão de lata. Tudo vibra e acelera pra longe, conversas e silêncios metálicos, um parafuso solto deixando o engate bater, a porta abrindo de assalto, um pulo breve na calçada e uma formiga que morde silenciosamente meu tornozelo.