domingo

Vermelho

Naquele dia, sentei inocentemente do lado de minha vó. Ela sempre foi uma senhora muito católica, mesmo no tempo em que nem era uma senhora. Virou pra mim, depois de um ano da minha mudança, e perguntou:

"Tem ido na igreja, meu filho?"

Estávamos sentados na cama. Olhei pra ela sem entender direito, só então caí em mim. Na minha cabeça, ao separar-me da minha família, essas obrigações haviam cessado. Eu lá ia acordar num domingo pela manhã pra ir à igreja de ressaca? Tenha dó! Hesitei como quem mente justamente pra mentir, ou pelo menos amenizar:

"Sabe como é, né, vó? Não tenho tido lá muito tempo, as aulas e tal. Sábado eu fico fazendo trabalho, acaba que não sobra tempo..."

"Meu filho, tu precisa ir na igreja. Fica aqui no quarto pensando, depois eu volto pra conversar sobre isso."

Pronto, me deixou de castigo. A matriarca sabia comandar as coisas, nem passou pela minha cabeça desobedecer. Estiquei minhas pernas sobre a cama e atentei pra passagem do tempo. Já sentiu? Essa vibração no ar que só quem pára e respira fundo consegue sentir? São milhares de bolhinhas que estoram, aleatoriamente, continuamente, nos pelinhos do nariz e nunca acabam. Então uma caixa se abre em algum lugar da cabeça e é só tempo, um caos ordenado seguindo o compasso irregular do coração.

"Então, meu filho, já foi na igreja?"

E que porra era essa agora?

"Vó, não foi tu mesma que me mandou ficar aqui, no quarto?"

"Sim, e eu também disse que tu precisava ir na igreja."

Apesar de fisicamente impossível, ela tinha dito isso mesmo. Fechou a porta atrás de si, me trancando com um novo problema. Eu devia ficar no quarto por não ter ido na igreja e precisava ir pelo mesmo motivo. Não havia ressalva, ou exceção, não podia ser "ou uma coisa, ou outra". Tinha de ser as duas. Na minha concepção, uma penitência impraticável. Por isso mesmo, a minha penitência.

Acontece que o quarto já nem parecia mais um quarto desses de casa, a cama era redonda, as paredes forradas de veludo vermelho. Tudo forrado de veludo vermelho. O diabo, vestindo um Armani e fumando um cubano, entrou pela parede me oferecendo um cigarro. Acendeu dizendo:

"Sabe, Chico, essa coisa de Deus, o maniqueísmo, o aborto, as drogas, os ídolos do rock, a boemia, a Boêmia, os nazistas, ..."

Acendeu de novo o charuto e olhou pra mim.

"Você parou nos nazistas."

"Então: os nazistas, os comunistas, os anarquistas, as grandes corporações, sabe? Parece que todo mundo tem a verdade na palma da mão. Amiguinho, a Verdade é uma prostituta e os progamas rolam aqui nesse quarto. Ela usa espartilhos sem calcinha, saltos finos de vinil, sobretudo de couro e um chapéu panamá. Não entende nada de estética, ou moda. Tu devia foder a Verdade de vez em quando. Ela cobra pouco, e pros chegados, nem isso."

O diabo é assim, diz coisas de mal gosto só pelo prazer. Vovó entrou meio assustada.

"Já foi?"

"Senta aqui, vó, que eu te ensino a rezar."

O diabo tragou inadvertidamente o charuto, e riu em meio a tosse.

5 comentários:

  1. "E que porra era essa agora?"

    Muito bom!

    E não, sua sugestão soaria um tanto clichê. Mas agora não importa. Apaguei o tópico, porque sou durona.

    =)

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  2. oq eu poderia dizer? surreal ou apenas sonho de bêbado? ou dá na mesma? ah, não sei mais!

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  4. Anônimo12:52 PM

    Feliz Aniversário..

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  5. oi fran...aki eh fran...
    veludo vermelho na parede....mto bom...surreal hein...vc eh mto talentoso....vou virar fã desse blog!!!...bjoss

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