sábado

A vida secreta de Bob

Tomava um café amargo. O lápis encima da mesa apontava pro rádio-relógio que piscava - paqueravam. Ninguém diria que seu amor era impossível naquele momento da manhã, não seria legal. Apesar de fascinado, tive que deixar o romance dos dois e descer as escadas, fazer a rua. Alguém precisava pagar o aluguel, comprar comida e apontadores. O primeiro degrau sopesou aqueles dois quilos adquiridos nas últimas semanas e agüentou calado. Agradeci.

Chovia fino como uma ampulheta gigante marcando os dias até o fim-de-semana. Esquecido, o guarda-chuva dormia sobre meu sofá. Atravessei a guarnição vazia do porteiro, a rua, e percorri um pedaço de calçada. Tudo estava realmente vazio até um vira-latas se aproximar de mim perguntando meu destino.

"Gostaria de me acompanhar até o escritório? Hoje, parece, só eu decidi trabalhar."

O cachorro assentiu com a cabeça e partiu na frente. Errou na outra esquina, e de novo, até uma poça seduzí-lo; lambia seu próprio rosto refletido quando o alcancei. Espirrei e ele me olhou curioso detrás de sua barba molhada.

"Cara, deixa que eu guio daqui pra frente."

Reconheci a terceira árvore daquela quarta esquina, estava descabelada, mas ainda de pés secos. Havia algo mais, tínhamos alguma história pra contar juntos e faltava a minha parte. Meu acompanhante latiu e me chamou a atenção pois sabia de algo, só não tinha as palavras. Me concentrei. Admiti que ambos tinham algo em comum e eu com eles. Coisas como vultos no meio da noite, Ana me dizia coisas em meio a vultos, ela dizia... droga, isso não tinha nada a ver com a árvore, com Bob...

Isso! Eu conhecia esse cachorro. Chamava-se Bob como aquele guardanapo, a marca do guardanapo sobre a mesa do Papoula's. Um cara de dreadlocks nos oferecia brincos de arame e eu limpava meus lábios úmidos de cerveja com guardanapo. Claro, estávamos perto do Papoula's, daqui dava pra ver aquela padaria... estava fechada. Domingos e feriados, só nos domingos e feriados. O cachorro sorriu, ele sabia que eu tinha descoberto.

"Você anda bebendo demais, seu babaca."

"Ora, Bob, não seja tão duro comigo."

"Suma da minha frente."