domingo

O Natal vem vindo

Já era noite de natal. Naquele ano a mesa fora farta, com vários Chesters, Coca-cola e sentimentalismos. Tudo recendia a uma preguiça canina de basset. Os convidados da família ainda estavam na mesa quando me recolhi para meu quarto com o ventre estufado e poucas idéias na cabeça. O sono logo se instalou no meu corpo, e lá fui eu sonhar.
No meu sonho, eu era ainda menor do que na época; devia ter lá uns 6 ou 7 anos. Claro, no sonho esse empecilho era meramente corporal. Pensava como o garoto de 18 que adormecera. Meu eu pequenino esgueirava-se para ver a árvore de natal enquanto toda a casa dormia a noite natalina mais cheia de mosquitos da minha vida. Pus a mãozinha no batente da porta e um olho pra dentro da sala. Uma pequena árvore artificial repousava ao lado da lareira, com seus galhinhos prateados tomados pos bolinhas coloridas. Subitamente uma corda desenrola-se de cima pra baixo dentro da lareira. O garoto de 6 anos sente um frio subir-lhe a espinha. O de 18 pensa: “Que tipo de piada é essa? Há esta altura do capitalismo o Papai-noel bem que podia começar a mandar os presentes via Sedex, Fedex, ou o que for. Mas não, o bom velhinho se expõe ao ridículo de descer por uma chaminé imunda para distribuir presentes a desconhecidos.”
Quem desce pela chaminé, porém, não é bem o esperado. Fardado de vermelho, com um gorro, um ninja desliza pela corda com uma agilidade felina, dá uma cambalhota, uma pirueta, uns chutes no ar, e pára. Me lembra daqueles filmes de sessão da tarde, O Ninja Americano, onde hordas de ninjas coloridos surgem dos mais inusitados lugares pra tentar, em vão, matar o mocinho, ou dançar em volta dele.
O Papai-ninja puxa uma aba do quimono, mete a mão, tira uma caixa vermelha com um lacinho verde e vai enchendo a árvore de presentes. Sua postura é sempre a de estar lutando com a árvore, um metro e vinte mais baixa, como se ela tentasse impedí-lo de colocar os presentes no lugar. Eu, até agora passivo, decido entrar em ação e descobrir, afinal, o quê aconteceu com o bom velhinho original. Saio do meu esconderijo e grito: “Arrá!” – sem saber bem o porquê de proceder assim.
O Papai-ninja logo pula em posição de combate. Da chaminé ressoa o compasso de um tambor de teatro japonês, cada vez mais rápido, até cessar com um gongo. Rapidamente o Papai-ninja puxa umas bolinhas da faixa na cintura e toca no chão. Uma fumaça branca cobre a sala e logo eu não vejo mais nada. Quando a fumaça se dissipa, ele já não está mais ali. De repente, a TV liga: “O natal vem vindo, vem vindo o natal”. Fico imaginando, se a sede da Coca-cola fosse no Japão, como seria nosso fim-de-ano.
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Será mesmo?
Há controvérsias:

quinta-feira

Rodolfo curte um Rock

Seis horas da manhã. Seis e dois. Os holofotes ainda estão impressos na retina de Rodolfo, suas luzes piscantes vermelhas, verdes e azuis. Ele segura uma baqueta, a baqueta que foi usada no show de agora pouco. Sente como se pudesse ele mesmo tocar qualquer coisa com ela.

Mas a grande lembrança da noite, o mais marcante mesmo, foi a vocalista. Não raras são as vocalistas mulheres, e Rodolfo curte um toque feminino na aspereza comum aos rockeiros. Ainda mais daquela vocalista, com sua pele lisinha e suas feições infantis contrastando com o som do acorde distorcido da guitarra ao fundo. Rodolfo corre sua mão pela baqueta enquanto pensa nela e em outras mulheres que gostaria de apertar os braços, de morder o pescoço, de beijar profundamente a boca e beliscar os lábios com seus dentes.

Caminhando distraidamente pela Oswaldo Aranha, é abordado:

“Vai um bagulho aí?”

Geraldo aproxima-se de Rodolfo sedento por algum dinheiro pra fechar a noite. Veio da Farrapos até a Oswaldo pra tentar vender o que sobrou. A uma hora dessas, Geraldo beira o desespero. Sonolento, deseja voltar logo pra casa.

“And all I can do is read a book to stay awake
And it rips my life away, but it's a great escape”

Rodolfo subitamente escuta a garota cantar ao pé do seu ouvido. Vitória sorri para o garoto e pede um bagulho para Geraldo, cuja a face se ilumina.

“Cinco reais.”

Vitória paga, envolve o braço de Rodolfo e carrega-o rua acima. Ele ainda está com aquela cara de babaca quando ela simplesmente diz:

“Te vi na platéia e tive que te seguir. Espero que tu não te importe.”

Ele balbucia um “Claro que não, imagina! Eu amo mulheres ousadas.”

“Aba... é... digo... claro que não.”

“Bom, como é teu nome?”

“É... Rodolfo – por um momento achou ter esquecido seu próprio nome.”

“Bem, Rodolfo, esse é meu telefone – e anotou o telefone na baqueta com uma caneta que surgiu sabe-se-lá-donde.”

Vitória largou o braço de Rodolfo e virou numa rua em direção à Independência. Rodolfo, ainda com a cara de babaca, olhou pra baqueta. Havia nela um número de celular e um coraçãozinho sorridente. Sentiu como se na noite passada tivera sonhado uma melodia, mas era só uma paixãozinha.

sábado

Um tal Geraldo


“Sapatênis de vinil
Bolsinha baguete
Luvinha de pelica
Você não me esquece
Lesbian Chic
Sapacaxa do agreste
Superafim
Superafim
Superafim de mim”

Geraldo não vê sentido algum na letra. Com 56 anos, um metro e sessenta e dois, obeso e calvo, ele não consegue entender a moral de bandas como Cansei de Ser Sexy. É em momentos como esse que ele agradece a Deus por não ter filhos, por não ter qualquer ligação com essa geração maluca da conectividade, da interatividade, da (des)informação.

A boate ressoa, brilha, e vibra, maravilhada com a sensação orgasmática da juventude. Do canto escuro do bar, Geraldo está completamente enojado. Não devia ter vindo, não precisava aparecer aqui, logo num lugar desses. Ele espera por Clara, uma putinha drogada que ele conheceu fazendo bicos como gigolô. Para incrementar sua renda, além de atuar como gigolô, Geraldo trafica maconha, cocaína, e, agora, ecstasy, para as putas que conhece. O princípio ativo do ecstasy é o MDMA (metil-dimetoxi-metanfetamina), que estimula a produção de serotonina, substância responsável pela sensação de prazer. Dos bagulhos que trafica, é o único que experimentou.

Foi quando quis comer Clara. Ela disse que até dava, mas ele tinha que tomar ecstasy com ela. Clara é uma junkie safada que gosta de sentir-se como um veículo da corrupção. Na sua concepção, quando mais a vida passa, mais se torna uma merda. É nesse ciclo de desilusão que ela acredita. Geraldo, que já foi professor do Colégio de Aplicação, prefere cortar fora a filosofia e partir pra ação. Desde quando se lembra, ele é compulsivo sexual, mas o problema só veio mesmo à tona quando deixou de ter escrúpulos.

Acende um cigarro, bebe mais um gole de cerveja. Clara se aproxima com uma amiga. Por um segundo, a sorte de Geraldo parece ter mudado.

“Clara, tu demoraste.”

“Não me chama de Clara, tu sabe muito bem que mudei meu nome. Essa é Roxanne, minha namorada. Vê um E aí.”

Geraldo cogita a possibilidade de seu coração falhar porque acha que não pode dar conta das duas. Mas, que droga!, vai tentar de qualquer maneira.

“Toma aí. Será que nós não pod...”

Ele não tem oportunidade de terminar a frase. Clara pega rapidamente a pílula e cai fora dali. Por um momento, Geraldo se vê pego de surpresa. Rapidamente, então, suas artérias inflamam de raiva e ele crispa involuntariamente a mão direita, como que para socar a imagem de Clara inda impressa em sua retina.

Ao dar o primeiro passo, no entanto, Geraldo sente uma dor irradiar-se do peito para a mandíbula e para seu braço esquerdo. Cai de joelhos tentando respirar. Sente como se o peito fosse de chumbo e se apóia no chão.

Horas depois, Geraldo acorda no HPS crivado de aparelhos.

Três dias depois, as amigas de Clara a encontram morta num banheiro. Elas não sabem qual a diferença entre uma overdose e um envenenamento.

sexta-feira

Relatos Cotidianos

Eu, depois de um ano de cobiça intensa e invejosa, comprei um mp3 player. Quando acordei hoje, escovei os dentes escutando mp3, fui pro cursinho escutando mp3, voltei pra casa escutando mp3.

Acabou a pilha.

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Porra do caralho!? Caiu granizo em Porto Alegre hoje! A Indepedência tá inundando!

Pior! Minha sacada tá inundando!

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Pensei numa história do Amante hoje (meu amigo, nome Rodrigo Amante). Começa assim:

As pessoas parecem enlouquecer no carnaval. Gera-se uma repentina comoção e rapidamente todo mundo parece ter o mesmo objetivo. Não poderia ser diferente com a figura do meu lado, Rodrigo Amante, caçador voraz da noite catarinense, e, porque não, Porto Alegrense. Apesar de bêbado, guarda aquele brio nos olhos. Ele não costuma perder tempo trovando gurias, mas acho que vai abrir uma exceção. Fico só ouvindo:

"Oi, tem namorado?"

Ela se faz, mas nós sabemos muito bem porque se vai a bailes de carnaval. Amante não desiste fácil, então ela finalmente responde.

"Não."

Parece desinteressada; meu amigo, no entanto, vê além dos olhos baços dela.

"Não precisa mais procurar então."

"Quem disse que eu quero namorar contigo?"

Já era.

"Depois de tudo que nós tivemos?"

"Tudo o quê? Tá maluco?"

"Esse momento lindo! Acho que eu tô apaixonado!"

Ele solta aquele risinho sarcástico de conquistador latino, aquele no cantinho da boca. Ela finalmente entende o sarcasmo dele e sorri. Definitivamente, já era.

Carnaval é assim. Nem precisa ser muito criativo.

*Todos os acontecimentos citados no continho são meramente ficcionais.

** Nenhum esquilo foi ferido durante a chuva de granizo.

segunda-feira

Nasce João Roberto

João Roberto, como todos que me podem ler, teve a sorte de nascer e sobreviver ao parto. Experiência realmente dolorosa, essa do parto. Expremer-se por um tubo pequeno em direção ao mundo. E depois é só solidão, e vire-se, e amor, a morte, sexo, dinheiro, filhos, carro, família e cadeados, enfim, uma bosta. João Roberto podia muito bem ter ficado dentro de sua mãe comendo do bom e do melhor, no quentinho. Mas, como todos que me podem ler, ele escolheu nascer, talvez por não saber o quê o esperar; curiosidade besta de criança.

Não nos alonguemos, nasceu. Pronto, agora ele vai poder ser o quê quiser. João Roberto é gay. Não é lá uma escolha muito fácil, ser gay. Mas ele é, e gosta. Assistiu "Madame Satã" e achou uma graça a agressividade do filme: "Já deu o cú hoje?".

"Ai, ainda não."

Pega o telefone, liga pro Astolfo.

João Roberto conheceu Astolfo no colégio, quando ainda era um macho. Claro que ainda não tinha experimentado nada disso na terceira série, era macho por convenção. Tornaram-se rapidamente melhores amigos. João Roberto apaixonou-se por Astolfo um pouco mais tarde, na quinta série. Por ser muito cedo, foi um amor meio negaciado, mas ainda assim amor. Com o passar do tempo e seu amadurecimento, ele decidiu contar pro seu amigo.

"Como é que é!?"

Astolfo não parecia muito animado com a idéia. Isso com certeza deixou Beto meio chateado, por muito tempo ele se sentiu abandonado, solitário, realmente infeliz. E, agora, envolto pelo cheiro de pipoca, assistindo um filme sozinho, lembrou do amigo.

"Fala Beto!"

Tofo convenceu Beto de que certos relacionamentos são impossíveis. No processo, aproveitou e convenceu-se.

"Tofo, tô tão sozinho."

Beto, vez que outra, tem recaídas. Eu realmente não entendo porque ele alimenta esse amor platônico.

"Porra, Beto! Eu também! Mas nem te anima. A Leila foi embora hoje, numa despedida meio conturbada. Não sei se ela volta."

"Bobo. Quem ia largar um bofe desse?"

Tofo não gosta muito de ser chamado de bofe, mas sempre fica lisonjeado com esses elogios, mesmo que partam do Beto.

"Ha, valeu Beto! Tu não tava namorando? Quer tomar uma cerveja?"

Tofo prefere encontrar o Beto em lugares públicos. Só por precaução.

"Pode ser. Vamos lá na Lima."

"Certo, tô saindo agora."

"Não, dá um tempo que eu preciso me ajeitar."

"Certo, 15 minutos, nada mais."

Solidão

Continuando a série do casal mais pop desse blog, com vocês, Astolfo. Ele acaba de chegar em casa com aquela cara de bunda, de quem acaba de ser abandonado, e imerge cada vez mais em reflexões...

"Cadê meus cigarros?"

Bom, talvez ele não seja lá tão reflexivo. A verdade é que sente um vazio, como se um vácuo tivesse chupado seus orgãos internos num processo indolor e asséptico. Tofo olha para a rua na procura de, bem... Leila, mas só vê hidrantes, um cão, um cão mijando num hidrante, uma senhora, a calçada, pegadas na calçada, alguns prédios tapando o horizonte, e por aí vaí.

"A cidade deve ter sido evacuada. Leila deve ter levado todo mundo que ela conhecia pra casa e só deixou o cusco e a véia gorda. Maldade, ela nem é tão gorda. E se fosse gorda, qual o problema? Isso só ajuda no efeito "vovó me faz bolinhos".
Acho que a minha vó nunca abandonou meu vô. Os dois deve ter vivido felizes, ela subjugada em casa cuidando das crianças, ele fazendo farra nos puteiros da cidade. Era mais fácil ser homem naquela época, afinal, nem existiam Leilas. Ela não tinha nascido, sua mãe nem tinha queimado sutiãs na praça Argentina ainda. Huhu, se bem que ainda continuam queimando outros combustíveis na praça Argentina."

Tofo nunca queimou nada na praça Argentina. Já a mãe da Leila queimou um sutiã quando Jânio Quadros proíbiu o uso de biquínis. Ela quase foi presa por causa disso, mas era menor. Tofo não sabe nada disso, só especula. Traga o cigarro e volta a pensar em Leila.

"Eu devia ir atrás dela. Não, isso é ridículo. Imagina chegar na frente da casa dela e chamá-la. Leila nunca vai atender, aliás, vai chegar na sacada e me mandar à merda. Aí começa a chover e a ventar, minha voz fica rouca, eu desisto e caio fora. Amar é ridículo, estar apaixonado é ridículo. Será que eu tenho limões? Que mulher insensível, a Leila. Só quer me usar... olha o quê eu tô pensando!! Vou fazer uma caipirinha."

Ele normalmente se alcooliza pra não ter que pensar nessas coisas. É meio que um mal atual, alienar-se pra não ter que pensar. Bom, talvez nem seja um mal tão atual assim, só um mal. A verdade é que Tofo faz uma ótima caipirinha. Nem muito doce, nem muito azeda; não tem tanto álcool a ponto de descer queimando, nem tão pouco a ponto de não se sentir nada. Eleva a produção de uma boa caipirinha a condição de ritual, que ele realiza com calma. Enquanto isso, vai pensando.

"De qualquer forma, nem sei onde ela mora, tudo que eu tenho é o telefone dela. É, não vou telefonar pra ela: demonstra fraqueza. Vamos deixar assim... Será que ela volta? Se importasse tanto, ela não ia me deixar assim. Nos últimos meses - quanto tempo faz mesmo? - ela sempre voltou. Some, e depois volta. Ela só pode querer me deixar maluco. AArgh, Leila, fora da minha cabeça! Um limão, dois limões..."

Tofo chegou no centésimo limão e Leila ainda não tinha desistido.

terça-feira

Astolfo

Não ouse ler esse conto sem antes ter lido o conto "O Casal"; afinal, a ousadia é característica do gênio.

Eu moro em Porto Alegre há bem uns seis meses, metade desse tempo gastei com Astolfo, que conheci no Orkut. É um garoto legal, meio idiota às vezes, mas foda-se, deve ser a idade. Começamos a nos escrever e em um mês ele me mandou uma poesia.

Nossa! Era horrível, pedante; comecei a achar que ele me amava. Sempre deve-se ter um pé atrás com os passionais porque eles acham que só por te amar merecem toda a devoção do mundo.
Ei! Não me venha com essa de Le petit prince, "tu te torna eternamente responsável por aquilo que cativas". O garoto mora num planetinha e é apaixonado por uma rosa dominadora, a história da cúpula de vidro e tal.

Eu sou dominadora, não nego, mas cupúla de vidro à puta que pariu!

Então, antes que ele me cercasse, decidi conversar a sério sobre nossa relação, decidir umas coisinhas. Os homens não são muito propensos a discutir a relação, sei lá, deve ter a ver com o passado patriarcal, mas a gente tinha que enfrentar a realidade. Depois da minha primeira separação o amor se tornou um sentimento meio efêmero, desmistificado, transitório e transferível. Hoje eu gosto é da intensidade, da abrasão, entende? Tipo sentir tudo de uma vez e partir pra próxima. Por isso eu precisava definir as coisas com meu principezinho, dizer pra ele que era pra valer, pelo menos pela duas próximas semanas. Algo meio Vinícios de Moraes, tipo a eternidade entre dois segundos consecutivos.

Utilitarista? Insensível? É foda. Tá o garoto aí, desolado, merdinha do caralho. Só tem uma solução: vou sumir por uns dias, assim ele acostuma.

Leila paga a conta. Tofo olha pras suas unhas, precisa cortá-las. "Fodão-se as unhas, essa filha da puta vai me largar"; é Tofo, a gente cai nessas às vezes. Os dois caminham quietos pela calçada cinzenta acompanhados pelas nuvens, por um cusco magro e por uma senhora gorda numa sacada. O cusco late como se por comida; a senhora tosse e pigarreia; as nuvens tentam descobrir "quem afinal é a cúmulus, quem é a nimbus?"; Tofo finge um cisco no olho; Leila puxa as chaves do carro. Ele queria ter um meteoro, queria fugir pra um outro planeta onde não houvesse Leilas. Ela abafa um "Tchau" nos dentes e se beijam. O gol solta um ronco e liga.
"Carro dos infernos. Mas tudo bem, ela volta... eu acho".

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Sobre o referendo:
http://www.verbeat.com.br/nosnarede/

sexta-feira

Billy e o cotidiano

Eu escrevi um texto pra minha cadeira de comunicação em lingua portuguesa I; era pra ser sobre o cotidiano, mas saiu uma história meio fábula. Como sempre, ficou péssima.

Ela começa assim:

Billy nasceu franzino numa dessas cidades americanas pacatas e desinteressantes. Recebeu o sobrenome do pai, Pilgrim, que quer dizer peregrino. Cresceu sonhando em ser um grande peregrino, conquistar o oeste e coisa e tal. Ele ignorava que o oeste já havia sido conquistado muitos anos antes numa marcha sangrenta que matou milhares de indígenas norte-americanos. Mesmo assim, nunca gostou muito de índios mesmo.

Essa, porém, não é uma história sobre Billy e índios mutilados, mas sim sobre a relação dele com seu cotidiano. É comum a vida se repetir e repetir nas cidades desinteressantes da América; de fato, é o que as torna desinteressantes. Billy acordava toda segunda pensando que era terça; nas terças tinha certeza ser sexta; nas sextas sentia-se como nas quartas. Sua mãe reclamava com razão: “Hoje já é quarta, filho! Todo dia depois de terça é quarta! E vai tirar essa remela!”. Já seu pai gostava e ria: “Deixa o garoto! Afinal, por que toda semana tem que ser igual mesmo? Por que não pode, pelo menos hoje, terça vir depois de terça? Todo dia ele tem aula mesmo...”.

Billy perdera a noção do tempo por conta da repetição constante dos dias. Como ele ia saber que era quarta? Qual afinal era a diferença entre quarta e quinta, entre segunda e sexta? Eram todos o mesmo dia para Billy e todo dia ele matava índios imaginários no caminho pra aula, e depois matava índios imaginários no recreio; tanto e tanto que os corpos se amontoavam na sua imaginação pouco fértil.

Eu penso que toda vez que Billy matava um índio, era um segundo a menos pra ele se preocupar. Ele sempre teve essa relação de antítese com o tempo – talvez por ser muito novo –, e ao invés de deixá-lo passar livremente, ele o baleava com seus dedinhos.

Billy tanto matou segundos, imerso em sua imaginação, que o tempo decidiu sacaneá-lo fazendo com que ele não saísse mais de um dia desses da semana. Todo dia seria realmente o mesmo, só para ele.

Então, Billy acordou numa segunda (ou quarta, ou quinta, tanto faz), e no outro dia, ainda era segunda. Mas ele achou que fosse quarta. Dizem que ainda anda por lá...

segunda-feira

O Casal

Astolfo tem um nome de velho, um nome da época do império. Leila ri de Astolfo porque, como ele bem sabe, ela acha o nome ridículo. Pra não irritá-lo, esforça-se para chamá-lo pelo apelido fofinho; Tofo.
Tofo fofo, ela brinca com o trocadilho acidental enquanto eles entram no restaurante árabe. Tofo adora quibe. Fofo, digo, Tofo fica lindo quando enche a boca de comida e fica sem jeito por não poder falar.
"A gente nem se conhece direito e tu vem me falar de relação!?"
Calma Tofo; respire.
"Hunny, falo de um caso. Vamos manter assim, estamos tendo um caso."
"Leila, como nós podemos ter um caso se não temos nenhuma outra relação?"
"Fica o seguinte, hunny: a gente tem um caso. Eu apareço de vez em quando na tua casa, a gente brinca de casinha e, quando qualquer um dos dois enjoar, eu volto pra casa. Você vai ser meu amante, é disso que eu preciso. Sem relacionamento sério, sem namoro. Ou melhor, um namoro fast-food."
"Leila, não viaja, a gente já tá fazendo isso. Além disso, quem disse que eu preciso de uma amante?"
"Eu digo. Benzinho, você precisa desesperadamente de uma amante, só não quer ver. Além disso, qual é o problema? Tem mais alguém na fila?"
Tofo odeia discutir com pessoas de escorpião. O assunto sempre recai nesses sentimentalismos, nessas chantagens, na verdade irrefutável que eles pensam mais rápido que ele e nessa habilidade visceral de dar guinadas estonteantes na argumentação. Sua mãe lhe avisara, são escorregadios aqueles regidos pelo signo.
Leila tem plena consciência da inabilidade lendária de Tofo com as mulheres. Ele é tímido, pouco bonito, gosta de falar merda e não se liga em delicadezas como cavalheirismo. Além disso, nunca sabe como terminar uma cantada, o momento exato, aquele momento em que os olhares se cruzam, o lábios se prostram, o derradeiro momento do beijo; Tofo nunca termina uma cantada. Quando o primeiro brilho desponta no olhar, ele treme, fica rijo, desata a correr como uma criança assustada. É um cagão. Um viadinho. Precisa ser pego no pulo, como uma corça assustada em frente ao caçador. É arisco o diabo! Leila tem plena consciência disso. Foi ela quem o pegou. É isso que gosta nele, a subversão de papéis, a caça sendo o caçador. E continua pegando.
Tofo solta um não pra dentro. É tudo o que ele diz. Não devia ter discutido. Devia ter ficado com o quibe.

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Quibe Assado

sábado

A chuva

A gente nem sempre sabe o que esperar da chuva. Ou quando esperar ela. A sacada do meu apartamento dá pra Santo Antônio, que é uma ladeira. Se tu perder um dia deitado na rede da minha sacada esperando a chuva, vai poder rir um pouco das pessoas que passam lá embaixo. Correm, escorregam, se molham e desesperam. Como as formigas quando eu molho a grama na minha casa, lá em Araranguá.

Não que eu goste muito de cortar a grama ou aguar as plantas. Mas de vez em quando eu acabo fazendo. E, também de vez em quando, bate aquela vontade de ser cruel com alguém, e as formigas se tornam um alvo tentador. Quem nunca olhou praquele formigueiro enorme, esquentou uma chaleira de água e entornou nas pobres diabas até ver a rainha correndo desesperada pra salvar sua vida enquanto as operárias se retorcem em dor e agonia, buahahahahaha, gasp cof cof...

Pois é, se existe um Deus, será que ele tem uma chaleira?


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Farofa de içá

sexta-feira

A Rotina

Quinta -feira não é dia sagrado
Quinta-feira não tem nada demais
Mas quinta eu sai de casa
pra não voltar jamais

Essa quinta marcou bastante
mesmo sendo muito pouco
Nessa quinta eu fiz café
pra ver se morro moço

Quinta-feira já passou
foi só um dia perdido na sala

Todo dia é quinta-feira
pra eu sempre poder
lembrar de quarta.

sábado

O Romântico

Ela tem os olhos do meu ideário poético
e quando eu me deparo com eles
posso ouvir o mar.
Ah! Que castigo!
Já faz muito tempo
Que eu não sinto o maravilhoso deles
se perder em mim.

quinta-feira

Psicopata Paraguaio

Diego Mercedez Sosa, típico paraguaio habitante da quente, e úmida, Assunção. Pratica esportes todos os dias pela manhã, às cinco; alimenta-se só das comidinhas saudáveis que "su mama" prepara com tanto carinho; estuda na universidade localizada perto de sua casa; e, todas as sextas, tenta matar alguém. Digo tenta porque, até hoje, não teve grande sucesso. Começou tentando atropelar um pequeno cachorro - não chega a ser alguém, mas algo, e de qualquer forma, vivo. Essa, eu devo dizer, foi uma história um tanto quanto curiosa.
Diego, que agora passo a chamar de Dieguito, dirigia no caminho de volta à sua bela casa quando deparou-se com um magnífico exemplar de vira-lata dando sopa na calçada. O pobre cachorro dormia inocentemente e mal sabia do animal inconsequente que tencionava matá-lo. Dieguito molhou seus lábios e parou o carro. Olhou no retrovisor, pros lados, nos bolsos e no porta luvas, mas não achou ninguém. Estava há uns bons 15 metros do cachorro. Acelerou o carro que disparou em direção à calçada; mas, chegando nela, o impacto da roda com o meio fio jogou-o pra cima. Dieguito não sabia; seu carro voava.
E voou contra o poste de luz, logo ali. A lâmpada do poste estourou, o estrondo se fez ouvir há seis quarteirões; o seguro, mais tarde, declarou perda total. Perda mesmo foi a de Dieguito: três dentes e 20% da visão do olho esquerdo. Com dedão deslocado, ele abriu a porta do seu destruído carro e rolou pra fora. O vira-lata rosnou e latiu. Dieguito tremeu e disse: "No, no!!". Foram necessários três vizinhos e uma vara para separar o cão do pobre Dieguito. Ao chegar em casa, "mama" somente lhe disse: "Coma teus aspargos Dido, estão esfriando!", com um sorriso ternurinha estampado no rosto.
Como já havia dito, essa foi a sorte de Dido "até hoje". Logo, hoje foi um dia diferente na vida atribulada dele. Contemos desde o princípio:
Dieguito passava pela ânsia assassina de todas as sextas. Havia estado o dia todo na universidade a procura de uma vítima fácil. Lá pelas seis, já quase desistindo, Dieguito decidiu sentar-se no bar do Bigode - e note, é uma verdade universal que, próximo a toda universidade, tem um bar chamado genericamente de "do Bigode"- e tomar umas cervejas pra relaxar. Do outro lado da rua, Rosário carregava sua pasta timidamente. Daremos uma boa olhada nela.
Rosarito, assim como é chamada em sua casa, é uma garota humilde que mora na periferia de Assunção. Depois de muito penar no ensino médio por causa dos óculos ridiculamente grandes que sua mãe lhe impunha, ela conseguiu entrar na universidade. Numa análise mais profunda, não sei dissociar se Rosarito teria tornado-se uma intelectual por causa da exclusão sofrida no colégio, ou se sofrera exclusão por ser intelectual. O fato é que os anos trouxeram bonança, novas ambições, e a pequena intelectual tornou-se uma jovem viçosa.
E é nisso que Dieguito repara ao olhar para o outro lado da rua. Ele conhece Rosarito, a quem simplesmente chama Rosita, e nota que ela dirige-se à parada. Sem pensar muito, como já é de praxe, ele corre até ela e os dois tem um conversa rápida. Rosita fica toda contente com a proposta de carona que acaba de receber. Dieguito começa a pensar na arma do crime.
Ele dirige para uma estrada meio vazia nas redondezas da cidade. Rosita não reclama, não fala nada, e Dieguito desconfia até que:
"Diego, já pode parar. Eu sei muito bem o que tu quer."
"Rosita, não é bem isso que tu está pensando. Eu não quero te machucar, quer dizer, não quero... Ah, Rosita... me ajude!"
Dieguito tenta ganhar tempo enquanto desatarraxa o extintor embaixo do seu banco. Ele disfarça encostando a cabeça no volante.
"Já faz algum tempo, Rosita, eu tenho te observado na universidade. Acho que nós temos várias coisas em comum, sempre gosto de conversar com você, eu, ãhn... eu... [maldito extintor] "
"Oh, não fale mais nada Dieguito!"
Ela avança com a fúria dos seus anos perdidos. Ele tenta se defender, mas oh!, como é forte Rosita. Ela o agarra e beija; um daqueles beijos sorvidos, lambidos, mordidos, enfim, esfomeados. Dieguito perde o ar e num golpe é lançado para o banco traseiro. Longe do extintor, ele não vê saída senão defender-se com as próprias mãos. Dá um tapa em Rosita, na cara.
"Isso, me bate safado!"
Rosita fica ainda mais voraz. Dieguito agarra-se nos bancos enquanto ela usufrui do seu corpo. Depois de algumas horas, mal consegue mover-se. Tem suas pernas dormentes, suas costas completamente arranhadas, seu rosto latejante. Ela fuma um cigarro enquanto observa-o. Ele tenta sorrir, mas sua cara dói.
"Vou levá-lo pra casa meu amor, não se preocupe."
Ela dirige o carro de Dieguito até sua casa, o deixa, e vai embora a pé com um sorriso de satisfação no rosto. Ele, depois do breve descanso, consegue finalmente levantar-se e vai até a porta. Sua mãe, morta de fome esperando na cozinha para jantar, ouve um barulho e corre para receber o filho. A coincidência a seguir deve-se a pura irônia do destino. Dieguito põe a mão na maçaneta e abre a porta impaciente, num rompante, direto no nariz de "mama". Ela, desestabilizada, tropeça por alguns metros e cai de cabeça na quina da mesa do hall de entrada. É o fim. O sangue espalha-se pelo carpete. Diego olha atônito para sua primeira vítima enquanto conclui que, definitivamente, não gosta do cheiro de sangue.

segunda-feira

O Amor

Foi com 6 anos de idade que o pequeno Chico descobriu o amor. Ganhara um CCE - caso tu não tenha notado, falo de um videogame -, e daquele dia em diante não se separaria mais dele. Pode parecer exagero, pode parecer até uma indecência dizer algo desse tipo, mas Chiquinho não se confundia sobre o que sentia, era amor. Não assistiria mais heróis conquistando mundos e fazendo todas essas coisas de herói, seria o herói. Correria o enduro, pilotaria um avião acima de um rio abarrotado de inimigos, desbravaria florestas infestadas de feras. A era da passividade televisiva acabara. Ele tinha todo o poder do mundo naquela caixa preta.
O amor o transformou num megalômano. Mas como todo amor, acabou. O pequeno Chico descobriu que o enduro não tinha final. Assim como a maioria dos jogos que, no fim, tornaram-se enfadonhos. Não haviam mais ilusões, Chiquinho agora era um pequeno garoto cinza e triste. Precisava apaixonar-se novamente. Refletiu por muito tempo e chegou a conclusão que a única pessoa em quem podia confiar seus sentimentos mais puros, mais viscerais, era ele mesmo. Aos 6 anos e meio, tornou-se um hedonista. Empanturrava-se de chocolate num ritual de prazer infantil, máximo e sem culpa; chafurdava na lama ao jogar bola, dominando-a pelo máximo de tempo; regalava a si próprio as gotas de chuva, a lua, o sol, a rua; era novamente o dono de tudo. Cresceu assim, apaixonado por sua simples visão, mas os hormônios não tardavam.
E quando chegou a hora, foi uma explosão. Renata tinha nos olhos a promessa do desconhecido, o brilho ébrio do amor adolescente. Chico traíra a única pessoa em quem confiava: a si mesmo. Entregou seu coração partido e apaixonado para ela, cegara-se a todas as outras. Recitou um poeminha, aproximou-se com aquele olhar de cachorro pidão, pegou na mão dela e beijou Renata, beijou-a com fogo que consumira seu hedonismo. E pegou na bunda dela. Indignada, ela esbofeteteou o recém-canalha Chico, e foi embora. Mais uma paixão da tortuosa vida do nosso herói acabara em tragédia.
Dessa vez, algo havia mudado. Chico voltou pra sua casa, olhou para seu velho CCE que continuava na estante, ajoelhou, e disse:
"Sabe querida, desde a nossa última separação, a vida não tem dado certo pra mim. Tu era o meu apoio, e quando agente se separou, eu me perdi. Mas agora eu voltei, voltei pra gente ser feliz, voltei porque eu ainda te amo e nunca mais vou te deixar. Me deixa ser seu denovo, deixa vai..."
Tentou ligar o CCE. Não pegou, havia queimado. Chico chorou como aquele garotinho de 6 anos, sentou na mesa da sala e decidiu que, daquele dia em diante, seria escritor.

domingo

O Blog

No meio de tanta gente interessante, o garoto olha para os pés e se vê abaixo deles. Ele talvez ainda seja muito pequeno para perceber certos nuances, talvez não tenha uma idéia muito boa do que faz por aqui. É um pessismista e, mal abriu a porta, já quer fechar. Que tal tomar um ar? Apresente-se.
Nascido num dia assim, qualquer, logo fizeram um feriado. Dia 15 de novembro, Proclamação da República. Um tal de Deodoro da Fonseca, putíssimo da cara com o imperador, foi lá e mandou-o devolta pra Portugal. Noventa e cinco anos depois, ele nascia com essa idéia besta na cabeça, fizeram-no um feriado. Mas vamos nos organizar; Deodoro pode até ter vindo antes, mas Francisco é muito mais importante. Ele escreve; agora até tem um blog.
Escreve assim, intransitivo. Francisco, ou melhor, Chico é sumário. Escreve, come, dorme, suspira, mija, respira e até agora não sabia bem porquê. Mas hoje ele torce e distorce sua vida nas linhas do recém inaugurado "o pessimista", péssimo quanto a verossimilhança, mas até que bem escritinho. Quem se importa com a verdade, não é mesmo? Caso você tenha algo contra, feche a porta.

Errata: Dom Pedro II foi para a França, não Portugal.