terça-feira

Continhos Paulistanos

Conheci um skinhead perto da Paulista

Não sei que horas eram, mas já era noite. Sabe aquela parada pra beber cerveja num boteco? Então, tava lá eu com meus amigos e tinha esse careca tirando onda com os garçons. Achei engraçado, ele notou e veio puxar conversa. Lá pelas tantas:

“... é que eu sou skinhead.”

Gelei. Não que eu seja punk nem nada, mas vai saber? É como andar na beira do desfiladeiro. Tentei me segurar não demonstrar medo e falei:

“ Isso aí é vodka?”

“É, com casca de limão.”

“Dá um gole.”

São_Paulo.zip

São Paulo, pra mim, é uma cidade de túneis. Pode parecer uma metáfora à criação da vida, à renovação autofágica da cidade grande cheia de crianças e mortos. Mas falo simplesmente dos metrôs, dos trens subterrâneos que chegam gemendo a cada três minutos sem parar e da multidão de zumbis em procissão de um lado pro outro, da Paraíso pra Brigadeiro, da Barra Funda pra Sé. Passei a maior parte do tempo em trânsito por esses túneis, atravessando lapsos de pensamento hipnotizado pelo tetlec dos trilhos, o barulho engraçado que caminha pro final do vagão.

Não há experiência de paisagem, de ver as coisas passando, só uma parede que corre e se transforma numa nova estação. De repente, já é a Paulista, ou a 25 de março, a praça da Sé. Os metrôs comprimem a cidade em espaços nulos de paredes viajantes, de cabos, de lugares que não existem na lembrança do passageiro. É a maravilha do mundo comprimido em zip.


segunda-feira

Prisão

Gold teeth and a curse for this town were all in my mouth.
Only, I don't know how they got out, dear.
Turn me back into the pet that I was when we met.
I was happier then with no mind-set.
The Shins – New Slang

Vi num filme, deve ter sido num filme, que os prisioneiros molham seus cigarros com saliva pra que eles durem mais, pra não queimarem tão rápido. A experiência da prisão deve ser algo foda, a solidão, nada pra fazer, imagino que eles fumem pra caralho, ou leiam livros e durmam o dia todo. Particularmente, eu não lambo meus cigarros. Já o resto, faço sim.

Moro sozinho nesse apartamento devastado da Lima, na ponta da Lima. Bares dia e noite funcionando lá em baixo e eu aqui, fumando, lendo e dormindo sozinho. Daí me faz pensar: qual a diferença afinal? Eles presos lá, eu aqui. É uma comparação meio ingrata, fui eu quem me prendeu, então não deveria haver motivos pra reclamar. Quem tá reclamando afinal? A vida solitária no apartamento devastado não é tão decepcionante assim.

Quando tem jogo, pra falar a verdade eu não torço, mas quando tem jogo junta uma porrada de gente nos bares. Do sétimo andar, dá pra ouvir a ovação a cada gol. E toda noite, uma velhinha costura pra fora na janela aqui do lado. Ela me olha escrevendo, eu olho pra ela costurando. Não nos conhecemos, eu cogitei ir fazer a barra das minhas calças lá com ela. Acho que ela me odeia. Tem sempre a cara fechada, assim, parece raiva. Uma velhinha que odeia as pessoas através da janela do seu apartamento, devo ser meio assim.

Tem mais uma coisa com o isolamento: sinto vertigem ao sair daqui. Moro sétimo, notou? É muito alto. Ao abrir a porta, o chão do corredor some, tudo some, uma porta que dá no nada. Vontade de chorar. Claro que me jogo no vazio quando preciso de cigarros, mas nem pensar ir torcer pro grêmio. Não gosto de jogo de futebol mesmo.

Ah, recebo visitas todas as manhãs, são os passarinhos que vêm me acordar. Eles pousam no parapeito e ficam cantando até em levantar e enxotá-los. Odeio acordar cedo. Eles insistem que eu deveria sair, tomar um ar. Ora, minha porta dá no nada, tomo ar sempre que abro a porta. Não, na verdade, falta ar. Deve ser o cigarro.

quinta-feira

Trágico

O garoto realmente achava que era um cachorro.

“Se tu cheirar meu cú de novo, te encho de porrada!”

Mas ele não era, não. Eu acho, na verdade, que era um garoto normal, tão animal quanto os muitos outros por aí, um pouco mais excêntrico, mas dá na mesma. Não era como se ele fizesse tudo por um biscoito scooby, era absolutamente ordinário nesse sentido. Eu diria que ele materializava algo tipo a grande dicotomia: razão e instinto, ou coisa parecida.

Tudo bem, vamos à história. A vida de cachorro impedia-o de certas atividades triviais, por exemplo: ir à escola. Isso chateava um pouco sua mãe, mas ela tentava preencher essa lacuna incumbindo-o de algumas tarefas: buscava leite na venda, lavava a louça, pendurava a roupa e por aí vai. O mais irônico, creio eu, era o fato de levar o cão pra passear. Na mente do garoto, era como reunir-se com os amigos. Mais legal ainda, pra fazer pose, o fato de latir em inglês:

“Wooof!”

Porra! Quem late assim no Brasil? Só garoto latia. Então, certa vez, nessa volta com os amigos, todos animadaços e curtindo altas brincadeiras no meio da estrada, olha só!? Já até sabe, num é? Foi atropelado, que nem cachorro. Um Volvo, enooorme! Não sobrou muito, não. Também não é uma história muito longa. Mas se vocês querem saber mesmo, só foram achar ele dias depois. A mãe bem que avisou: não vai muito longe de casa. Ele foi.

quarta-feira

O escritor faminto e o mundo zipado

Observo o mundo comprimido dentro do olho mágico. Aparentemente, o corredor só é habitado por uma samambaia podada e por um quadro curvo de recados. Dentro do olho mágico, o corredor parece um longo e calmo caminho até o vizinho. Lá no fundo sua porta se contorce para caber num espaço exíguo.

Ao girar a chave, trinques e traques soam. Tão mágica quanto o olho, ela destranca a porta que se abre como a capa de um livro iluminado por lâmpadas econômicas, liso como um piso recém lavado cheirando a pinho. Eu não devia estar saindo, não devia mesmo. Ele pode estar por aqui, aquele homem rude, sua cabeleira inconfundível, desgrenhada como se louco, como se faminto. Embora não tenha ofendido sua família, nem mesmo saiba seu nome, ele inexplicavelmente quer me matar.

Ouço um estalo, uma porta batendo. Não preciso caminhar ou ouvir passos, não preciso feder ou sentir seu cheiro, não preciso sorrir ou vê-lo sorrir num último momento precedente à violência fatal de sua mão, porque antes mesmo da visão de sua ameaçadora figura posso transcender meus sentidos e saber, simplesmente: quem entra no térreo é o homem desse livro maldito que narra minha morte. Meus sentidos, no entanto, também não negam sua presença; minhas pernas, essas sim, negam-se ao movimento. O instinto torto do homem civilizado que sabe aceitar a hora da sua morte.

Então o estouro, o estrondo de um livro de mil anos que se fecha. Do bolso do seu casaco uma chama expande-se em slow motion liberando o fedor inconfundível de pólvora e milhares de partículas ínfimas de chumbo incandescente. Uma miríade me leva por uma viajem nos limites da consciência.

Oh it´s one for the money
Two for the show
Tree to get ready, now go cat go!
But don´t you
Step on my blue suede shoes
Oh, you can do anything
But lay off of my blue suede shoes

Através de cores iridescentes, o leão dos olhos de mosca fala:
“O Sr. Durdan manda lembranças.”

Quem?
Já não importa.