domingo

Fligth A147

Continuando a série Leila e Astolfo, o não-casal. Depois de um ano, interrompido por alguns encontros esparsos, retomo o relacionamento do dois sem promessa de frequência ou continuidade. Além disso, algo mudou no estilo, não sei se vão notar, mas me parece diferente escrever hoje como era ontem. De qualquer forma, ficam os links para que se possa averiguar:

http://opessimo.blogspot.com/2005/09/o-casal.html
http://opessimo.blogspot.com/2005/10/astolfo.html
http://opessimo.blogspot.com/2005/10/solido.html
http://opessimo.blogspot.com/2005/10/nasce-joo-roberto.html
http://opessimo.blogspot.com/2006/12/astolfo.html

Esse era um projeto contido em algo maior, um livro em que eu contaria em episódios não-lineares as experiências de casais estranhos. É uma pena que grande parte não esteja publicada no blog para a comparação dos bravos interessados. De qualquer forma, acho que já dá pra ter um panorama superficial. Vamos ao conto.


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So I was wrong.
What could I do?
I knew all along.

The Gossip – Coal to Diamond


"Welcome aboard to flight A147 from Porto Alegre to..."

Leila continua maquinalmente o texto de sempre sobre o assunto de sempre. Sua cabeça, em contrapartida, perscruta outros pensamentos. Todos eles têm como cenário a figura desolada de Astolfo no retrovisor do carro. O garoto mal se mexia e, por Deus, desde quando ela passou a se importar? Mas não haviam Astolfos nas nuvens ou nas asas do avião para contrária-la, não haviam passageiros com ânsia ou com o cinto desafivelado para distraí-la.

Esquentou o café na cafeteira, arrumou o lanche no carrinho, o que mais podia fazer? Era solitário encontrar as aeromoças conversando sobre pilotos e passageiros enquanto tudo que lhe vinha a cabeça era a imagem do retrovisor. Já não era mais a dona das rédeas, a situação começava a ficar insustentável. Devia ter dado uma chance pro garoto, um telefone já seria de bom tamanho, mas não, era melhor não se envolver. O problema é que "o melhor" nem sempre é.

Caminhava num corredor em direção a Buenos Aires. Cada passo significava milhas aéreas que Leila não poderia retirar mais tarde pois elas se transformariam em "tarde demais". Divisou a comida entre crianças, velhas gordas e os habituais - afinal, eram todos habituais de qualquer forma. Ao fim, mastigava um amendoim salgado e bebericava café no seu assento exíguo. O piloto já passava as velhas cantadas quando terminou seu café e sentiu o desejo irreprimível de fumar. Acendeu escondida um cigarro imaginário, mas não se pode simular tudo o que faz falta.

O avião então pousou sutil como a imensa massa de metal que é. Algo rangeu, uma outra coisa tremeu e no fim tudo parou. A vontade da pequena massa de carne enclausurada no peito de Leila foi análoga, ansiava pelo torpor da noite que dormiria em breve. Já a xícara de café atingira o objetivo deitada inapropriadamente no chão. Depois da reprimenda, Leila chorou algo como desgosto e arrependimento, foi para seu quarto, guardou sua parca bagagem, deitou na cama, esperou o sono chegar olhando para o teto alienígena de suas acomodações e caiu num sono permeado da recente realidade.

4 comentários:

  1. "O mais engraçado é que isso não me incomoda, parece lógico nos afastarmos quanto mais nos conhecemos."
    Não é frase desse conto, mas do anterior. Concordo. Por mais “estranho” que pareça, quanto mais conhecemos as pessoas, mas estranhas elas se tornam, apesar de serem íntimas. Mas acho que os relacionamentos “estranhos” são os mais normais. Pelo menos pra mim. =)
    Muito bom os contos... passa uma sensação de “estar em casa” hehe
    Parabéns!

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  2. concordo com a bárbara. em grande parte...
    esse foi um dos textos mais "pé no chão" que eu lembro ter lido por aqui. é duro e meio cruel.

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  3. Eu quase podia sentir os barulhos de aeroporto enquanto lia o conto, mesmo que eu nunca tenha visitado um desses. Seus contos são muito... humanos é a única palavra que me ocorre, mas expressa bem como eu me senti quando os li. Reais e perfeitamente palpáveis... sabe? É por isso que eu gosto deles.

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  4. (mesmo que eu nunca tenha visitado um desses aeroportos, no caso, e não os contos)

    O que eu quero dizer é que li os contos, mas nunca fui a um aeroporto.

    Ê!

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