terça-feira

Possibilidade

É revirando o começo da história que talvez o final comece a fazer sentido. Há, no entanto, algo de intraçável em toda história, e por mais registrada que seja, talvez o importante sempre se perca.

Quando Leila acordou na cama de Astolfo, naquela primeira vez, seu celular despertara muito depois do garoto se levantar e batucar em seu teclado. Resmungou um algo de intragável e comestível, sentia um gosto forte de nicotina nos dentes, como gato morto. Astolfo estava feliz e recontava os passos até a cozinha na esperança de diminuir o tempo. Recolhia o lixo como um bom idiota. Lavava a louça com um sorriso besta.

Leila sentia uma puta ressaca e mesmo assim esticava a mão em direção ao maço. Quando foi que nos conhecemos mesmo? Ao que tudo indica, as impressões de Astolfo sobre a memória de Leila falhavam. Não lembrava sequer de ter fumado catorze cigarros enquanto jogavam sinuca, apesar de tê-los contado. E guardou a última ficha na bolsa, como sempre fazia pra ter lembrança de seus primeiros encontros: figurava em sua casa, na última prateleira da estante de seu quarto, uma baderna de badulaques cujo o significado irrastreável, porém latente, os mantinha intactos. Aquela última ficha viria a se perder afogada naquela prateleira até a derradeira mudança quando rolaria para fora pela janela.

Da mesma forma, Astolfo defenestraria sua chave para trancar pra sempre os dois dentro de seu apartamento, mas manteve alguma dignidade e reclamou do cigarro de Leila, pois não queria voltar a fumar e ela tornava tudo mais complicado. Leila sabia tornar as coisas complicadas, e começou a maquinar para se manter afastada de Astolfo, mas talvez não seja isso. Leila, quem sabe, quisesse que ele jogasse aquela chave fora; ou, pode ser, estava pouco se fudendo; não podia, talvez tivesse filhos em Jacarepaguá. Mesmo naquele momento, a verdade já estava perdida. Hoje, qualquer um dos dois sequer lembra de ter acordado.

4 comentários:

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  2. Bastante gostoso de ler, Chico. Simples e divertido. Achei o terceiro parágrafo um pouco confuso em determinados momentos, ficou meio complicado determinar se era Leila ou Astolfo quem está comandando a narrativa. Ah, talvez seja coisa da minha cabeça.
    Mas ainda tenho meus preferidos.

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  3. Muito sutil, Chico. Procure por "O amor é uma companhia". Alberto Caeiro é simplesmente fantástico!

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