quinta-feira

Taquicardia


Há de se entender que, para uma criança, o interesse dura o tanto da novidade. E, o tragicamente pior, tragicamente imbecil, que os adultos não passam de crianças com facas. Eu acabo de me cortar pela primeira vez, e na expectativa do segundo corte, reteso. Entenda-se, por fim, que em adição à experiência vem uma estúpida e falsa predictabilidade acinzentando o mundo.



Namoro ela faz um mês. Já não suporto sua presença, não a reconheço. Ela parece sentir saudades pelo telefone. Arranha um beijo, parece entender. Passei na rua e dei tchau de longe. Sou um covarde, mal posso encará-la. Me despeço, sem beijo. Como chegou a isso em tão pouco tempo? Ela já não me encanta como antes, caminha desengonçada na minha direção e me irrito porque eu sei o que vou fazer, imagino como ela vai reagir, mas apesar de tudo não tenho certeza.


Aos poucos mergulho na conversa. Como vai e tudo o mais. Minha namorada sentada do outro lado da mesa, um simulacro opaco daquilo que passei a chamar assim. Ser minha namorada talvez tenha estragado tudo. Ela também sente; uma aura que circunda tudo e faz o mundo murchar. Foi rápido, apaixonar-se, querer-se, cansar-se, desistir. É melhor encurtar a conversa, já não presto atenção. Aperto a mão dela com força pra tentar espremer pra fora aquilo que era há um mês atrás, talvez exista um pouco ainda. Dói um pouco e passa, de novo e nada. Vamos sair daqui.


Eu não quero mais as tuas coisas, não quero mais o teu nome vinculado ao meu, a obrigação de te amar pros outros verem, me sentir obrigado a te amar, namorar me fez isso e eu não quero mais, porque não é espontâneo, porque não é verdadeiro e é a única condição de se namorar - que eu preciso te amar -, e me obrigar a isso é sujo, eu não posso mais e imagino que tu entenda. Compreendo não ser tua culpa, mas é o jeito que tu sabe fazer, é dar e receber, e sendo assim não há mais o que dar porque acabou. Eu não me sinto mais inteiro ou mesmo parte de algo, é nojento. Tua presença hoje evoca tudo isso, e também por isso acabou.


Nojento aqui é tu e esse teu egoísmo sincero. Eu deveria saber desde o começo pois a verdade é que nunca foi sincero, que os gatos na rua são menos sujos e mais idôneos e ainda assim livres, tudo aquilo que tu chama amor é um engodo asqueroso já que na tua cabeça mora um espelho em frente ao teu retrato. Agora mesmo tu deve imaginar que teus olhos não são dignos das minhas lágrimas; então olha pra ti e tua comiseração, se choro é porque tua auto piedade é uma armadilha comovente. Não me peça desculpa, ou me negue qualquer partícula de responsabilidade, eu não sou uma criança e sei lidar sozinha com o que sinto.


Então é isso?


Esperava que eu te segurasse pelos braços?


Do opaco simulacro algo se ilumina e eu vejo um espectro do mês passado, a criatura por quem me apaixonei e não aquele mutante. Ela se afasta sem abaixar a cabeça fazendo o tempo comprimir entre um mês e agora e desaparece na esquina deixando o vácuo do que acabamos de destruir.

5 comentários:

  1. Não sei o motivo, mas lendo o texto agora me lembrou (onde tão as aspas nessa droga de teclado?) Do lado de dentro, do Los Hermanos.

    E gostei mais dessa segunda versão.

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  2. Eu li a primeira versão e eu já te disse o que achei...
    Tá, eu leio depois de novo e falo o que eu achei. Preguiça do inferno...

    E Fer, essa música dos Loser é ótima.

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  3. my boy, sempre surpreendendo. belo texto chico.

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  4. Anônimo6:08 PM

    e aí chico...
    legal o texto, mesmo. gostei.
    teus textos são legais.

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  5. 'É delicada, mansa, tem 22 anos não tem ninguém morando aqui na cidade.. não tenho ninguém, só tenho uma irmã mas ela mora longe, em Trambique Grosso. Onde é isso? Ah, não tem nem no mapa.. é longe. Agora, pela primeira vez me chamou de meu amor, e me disse que assim que me viu sentiu uma coisa aqui dentro, ó, aqui no coração. Súbito, senti nojo daquele bem estar, daquela ternura, da possível devoção daquela mulher. Inexplicavelmente desejei que ela não estivesse ali. Que se fosse. Mas como evitar lágrimas, perplexidade, explicar que sentia náusea e desespero agora por aquela invasão? E como se guiado por alguém, possuído, fui até a cozinha, peguei uma faca e com um único golpe matei-a. Em seguida chamei o velho. Pena, ele balbuciou, ela não tem dinheiro, pois não? Não. Embrulhei-a num lençol e seo Donizete me ajudou a enterrá-la no quintal. D. Justina entendeu que estávamos preparando um canteiro: de coentro, ela gritava lá da frente, de coentro e de rúcula... um canteiro! Isso é bom. Depois, eu e o velho bebemos uma garrafa de água ardente, e fomos dormir. Anestesiados. Alguma coisa que eu não compreendia evolou-se de mim. O sol já ia alto quando acordamos. Eu e o velho. Havia entre nós apenas uma desconfortável impressão de que havíamos enterrado alguém. D. Justina procurava inutilmente o canteiro. Os pássaros cantavam nas goiabeiras. Alguma coisa mudou,.disse o velho, e isso é de certa forma agradável, não? Agradável sim, respondi.'

    ['horrível', em cartas de um sedutor. hilda hilst]

    lembrei desse trecho. um dos que mais gosto desse livro dela, que adoro.

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