domingo

O cavalo do diabo

Na ficção que criou em sua cabeça, Beto é Sinbad navegando um mar composto de brita e piche. As partes tremeliquentas de sua moto são os inúmeros trecos e tramelas cujos nomes esquecidos repousam em antigos dicionários navais. Não os conhece, os nomes das coisas, porque a existência delas prescinde à nomenclaturas, e Beto vive no imediato ao seu redor. Lá no fundo, ele sabe que não passa dessa ficção que criou de si mesmo: Sinbad, o marujo do asfalto, singrando mares no cavalo do diabo. Talvez nenhum de nós consiga reconhecer algo além da nossa própria ficção.

x-x-x

Na manhã em que acordou atrasado pra começar a viagem, as nuvens pareciam tão pesadas no céu que o tempo passava diferente, mais lento. Os pássaros da Aclimação não voavam, cantavam ilhados nas árvores. Beto reparou em sua sinfonia dissonante ao amarrar a mochila na garupa. Um cachorro latiu ao longe e então a cena estava posta: hoje cavalgaremos em direção a morte, velejaremos sobre mar caudaloso, sem estrelas, nos perderemos na Vastidão. Tinha comprado uma moto pra isso mesmo. Enfiou as mãos nas luvas, fez o motor retumbar, os discos da embreagem se chocaram e a magrela desceu a rua carregando Beto nas costas.

Muito tempo depois, no quilômetro 307, começou a chover. Assim que o asfalto encharcou, os caminhões levantaram água, criando nuvens que giravam violentamente, presas na zona de baixa pressão. Costumava viajar sozinho com eles, os caminhões, porque os carros passavam muito rápido, sumiam logo no horizonte. Pilotava ao largo dessas bestas enormes ignorando o risco, como um pássaro que se alimenta dos restos nos dentes dos crocodilos. Não era assim, no entanto, que Beto via sua relação com os monstros. Na sua imaginação, ele nadava em meio a baleias cujo canto estridente sempre o lembrava de que sua presença era, no máximo, tolerada. De qualquer forma, a visão das criaturas em seu habitat valia a pena, porque curiosa e selvagem. Sentia vontade de tocá-las, como se isso pudesse integrá-lo ao grupo, torná-lo menos estrangeiro, mas o toque do ventre gelado e sujo dos caminhões não poderia naturalizá-lo ao asfalto. Nada podia. Ele não é nação onde se possa morar e nada nele nasce. Essa linha que atravessa campos e matas, serras e vales, é o lugar da máquina.

Quando o ronco do motor novamente invadiu seus ouvidos e Beto abriu os olhos, a moto inclinava levemente em direção ao acostamento. Havia cochilado por um segundo. A morte rondava.

x-x-x

Luiza gosta de me provocar. Dança comigo com se quisesse me levar pra outro lugar, um que existe em sua cabeça, de um devaneio perigoso e sensual. Nossos joelhos dobram e ela logo se levanta, nos tocamos de leve. Seus cílios são longos como agulhas negras e sua boca está manchada de batom. Ela já beijou alguém hoje. Meu sangue fica denso quando penso no beijo dela, minha pele eriçada. Sua cintura parece desenhada pro tamanho da minha mão, ou talvez seja o contrário. Luiza, de vestidinho preto, cujos olhos afiados me puseram de joelhos, hoje me ensinou a dançar.

x-x-x


O vento atacava com força a bombordo: um maral que batia aos socos no corpo de Beto. Fazia algumas horas andava teso e cansado. A chuva não cedera por mais de cinco minutos nos últimos duzentos quilômetros, a mandíbula doía tensa do frio. Era verão, mas o vento sul soprava pela BR-101 desde o fim daquela serra que tem perto de Curitiba. Quando ultrapassado por caminhões, seu corpo era sugado pra frente e logo empurrado pra trás, numa dança estranha. Sentia a necessidade de abrir a viseira de vez em quando pra receber um pouco de água na cara, ver se acordava.

Decidiu então que era hora de apertar o passo, precisava chegar logo, sair da estrada. Deu sinal, girou o acelerador, e se jogou na nuvem ao lado dos caminhões. Já não via mais nada, o vento não dava conta de secar a viseira. Aos poucos, tudo foi ficando embaçado e muito claro, muito branco. Distinguia, talvez, a massa um pouco mais escura que formavam as rodas nos eixos duplos. No meio do vórtice, partes e pedaços foram se  juntando e Luiza pulou através do portal que formaram. Braços peludos, olhos secos, garras por unhas. Uma aparição em trapos negros, a morte finalmente vinha buscá-lo. Jogou a moto pro lado, soltou a mão esquerda do guidão pra proteger o rosto.

Quando o pneu da frente quicou, sabia que saía da pista. Fez força pra voltar, por entre os dedos viu a massa escura das rodas dos caminhões se aproximar. Chutou no meio da calota pra não ser sugado e a moto voltou pra pista, mas seu tornozelo tava fudido. Não havia mais alucinação. O coração retumbava no ritmo do motor, e Beto sorria maluco, às lágrimas. Voltou a acelerar, porque o pé do freio tava torcido.

As nuvens se dissiparam, o barulhos dos claques e o gemido dos eixos deu lugar ao rugido solitário do bagual. O vale encharcado se abriu novamente a frente. Conseguiu discriminar viadutos sobre a rodovia, prédios marginais, saídas e entradas. Faltava pouco pra chegar a Balneário. Soltou as patas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário