sexta-feira

A antropofágica senhora Santelmo

Atravessando as paredes de um vilarejo inominado próximo a Puerto Deseado, perscrutando suas frestas, levantando os tapetinhos rendados em frente às portas dos barracos, ou até mesmo, com todo o cuidado e silenciosamente, caminhando pelas ruas desse pequeno vilarejo tão próximo do fim do mundo, o viajante desavisado deve espantar-se com a falta de habitantes. Ninguém. É como um deserto. Como praia no inverno.

Então, virando uma esquina, caminhando na sua direção, desponta ela, a gloriosa e antropofágica senhora Santelmo. Baixinha, buchudinha, os olhinhos azuis ou cinzas – depende se é maio ou março –, com seu xale, sua bengala e seu cachimbo. A senhora Santelmo não é tropicalista, mas tem lá seu requebrado. Falastrona, vai se aproximar do viajante, convidá-lo a tomar um chimarrão naquelas cuiazinhas argentinas, oferecê-lo fumo, estralar os dedos, soltar aquele pigarrinho e começar a contar a história de Santelmo, pólo da produção de lã argentina nos anos 50. Aí, o viajante confuso, vai me perguntar: “Não era inominado?”

Rindo, sempre contente, a senhora Santelmo facilmente explica a contradição: a cidade não existe mais, porque já não mora ninguém ali.

Ora, e você senhora Santelmo, onde mora então?

Eu já não sou habitante dessa cidade. Moro na Santelmo dos anos cinqüenta quando os carros eram grandes e raros, tão raros quanto os beijos dos jovens escondidos atrás das igrejas. Carrego dentro de mim – e dá aquele tapinha no bucho – os pedaços de cada habitante que teve a sorte de compartilhar comigo esse sonho dourado. São todos meus filhos, eu os mantenho aquecidos e seguros, para que nunca venham a descobrir aquilo no que nosso sonho se tornou.

Ainda confuso, sem entender nada, o viajante vira pra mim e diz com os olhos turvos: “E essa velhinha, quem é?”

Meu caro amigo, essa velhinha é o que há. Todas essas paredes, os tapetinhos de rendinha, os retratos coloridos à mão, os cachecóis de lã – mas só os vermelhos e os amarelos – são ela, além dessa simpatia aí na sua frente. Você bem que poderia virar um deles e ir morar naquela Santelmo, ou talvez prefira essa, basta apelar a pequena senhora. Ou, creio eu, você pretende conhecer antes a pequena Lili de Buenos Aires, o sombrio Juan de Corrientes, e tantos outros em tantas outras cidades, que, assim como este vilarejo, comprimem em suas frestas um pequeno segredo terrível e maravilhoso. É possível, também, que você só deseje voltar. Nesse caso, é arriscado, mas basta responder: “de onde você veio?”

quinta-feira

Taquicardia


Há de se entender que, para uma criança, o interesse dura o tanto da novidade. E, o tragicamente pior, tragicamente imbecil, que os adultos não passam de crianças com facas. Eu acabo de me cortar pela primeira vez, e na expectativa do segundo corte, reteso. Entenda-se, por fim, que em adição à experiência vem uma estúpida e falsa predictabilidade acinzentando o mundo.



Namoro ela faz um mês. Já não suporto sua presença, não a reconheço. Ela parece sentir saudades pelo telefone. Arranha um beijo, parece entender. Passei na rua e dei tchau de longe. Sou um covarde, mal posso encará-la. Me despeço, sem beijo. Como chegou a isso em tão pouco tempo? Ela já não me encanta como antes, caminha desengonçada na minha direção e me irrito porque eu sei o que vou fazer, imagino como ela vai reagir, mas apesar de tudo não tenho certeza.


Aos poucos mergulho na conversa. Como vai e tudo o mais. Minha namorada sentada do outro lado da mesa, um simulacro opaco daquilo que passei a chamar assim. Ser minha namorada talvez tenha estragado tudo. Ela também sente; uma aura que circunda tudo e faz o mundo murchar. Foi rápido, apaixonar-se, querer-se, cansar-se, desistir. É melhor encurtar a conversa, já não presto atenção. Aperto a mão dela com força pra tentar espremer pra fora aquilo que era há um mês atrás, talvez exista um pouco ainda. Dói um pouco e passa, de novo e nada. Vamos sair daqui.


Eu não quero mais as tuas coisas, não quero mais o teu nome vinculado ao meu, a obrigação de te amar pros outros verem, me sentir obrigado a te amar, namorar me fez isso e eu não quero mais, porque não é espontâneo, porque não é verdadeiro e é a única condição de se namorar - que eu preciso te amar -, e me obrigar a isso é sujo, eu não posso mais e imagino que tu entenda. Compreendo não ser tua culpa, mas é o jeito que tu sabe fazer, é dar e receber, e sendo assim não há mais o que dar porque acabou. Eu não me sinto mais inteiro ou mesmo parte de algo, é nojento. Tua presença hoje evoca tudo isso, e também por isso acabou.


Nojento aqui é tu e esse teu egoísmo sincero. Eu deveria saber desde o começo pois a verdade é que nunca foi sincero, que os gatos na rua são menos sujos e mais idôneos e ainda assim livres, tudo aquilo que tu chama amor é um engodo asqueroso já que na tua cabeça mora um espelho em frente ao teu retrato. Agora mesmo tu deve imaginar que teus olhos não são dignos das minhas lágrimas; então olha pra ti e tua comiseração, se choro é porque tua auto piedade é uma armadilha comovente. Não me peça desculpa, ou me negue qualquer partícula de responsabilidade, eu não sou uma criança e sei lidar sozinha com o que sinto.


Então é isso?


Esperava que eu te segurasse pelos braços?


Do opaco simulacro algo se ilumina e eu vejo um espectro do mês passado, a criatura por quem me apaixonei e não aquele mutante. Ela se afasta sem abaixar a cabeça fazendo o tempo comprimir entre um mês e agora e desaparece na esquina deixando o vácuo do que acabamos de destruir.