sábado

Ad Abyssum in equo diaboli ipsius vehor

"No próprio cavalo do diabo eu cavalgo para o abismo."


Não há limite à cidade. Ela se desmancha no aparente final, se transforma aos poucos em aterros sanitários, motéis, vai esfarrapando, pequenas casas ao longo das rodovias demarcam o rareamento da ocupação do homem e lá, pra dentro do mato, lá dentro, talvez o corajoso ainda encontre algum índio pintado roendo um pedaço de pau com uma pedra. Tudo é a cidade, seu caco, seu resíduo. E tudo nela existe em volta do homem.

Esse homem agora é Cardoso, que olha ao largo do vale as poucas luzes de uns barracos relampejando intermitentemente. Um monte de cinzas guarda ainda aos seus pés os restos de uma arcada que comprovará os seus palpites. Herminiana está morta. Se através desta arcada ela ainda pudesse falar, diria a ele sobre seus assassinos e como fora espancada até a apoplexia antes de ser queimada viva. Mas agora, essa parte da procura acabou.

***

Dona Lurdes entra no escritório trajando um vestido leve, solto sobre seus ombros. A idade fez-lhe bem, continua com a pele tesa, os olhinhos faíscantes. Quer notícias boas, é possível ver através deles, mas hesita em sentar-se como que profetizando. Cardoso estende a mão em direção a cadeira enquanto toma um gole de água. Precisa limpar a garganta.

"Olha Dona Lurdes, o que eu vou dizer não é fácil..."

A mulher chora, seu rosto fica vermelho. Soluça um pouco. Cardoso nunca sabe o que dizer, as palavras não cabem. Mas não precisa, ela já sabe. Herminiana sumiu já faz três meses e o dinheiro que Dona Lurdes gastou na procura converteu-se na confirmação de sua morte. Fora o choro, só parece restar um comentário.

"Ache os filhos-da-puta." - assim, numa voz baixa e resoluta.

"Já faz algum tempo, não posso garantir..."

"Ache-os."

"Eu não gosto, mas sou obrigado a dizer que vai custar mais."

"Sei do preço."

"E já faz muito tempo, talvez eles já nem estejam mais por aqui."

Dona Lurdes levanta os olhos sangrentos que parecem adensar, e cospe as últimas palavras da sua visita.

"Só tem um lugar pra onde eles vão, e de lá eles não vão poder voltar."

***

Foi o porteiro quem relatou que Herminiana havia entrado no apartamento e jamais saíra. Ali dentro, poucas marcas de resistência: um copo quebrado na sala, o lanche inacabado sobre um prato no sofá. Na realidade, sequer poderia-se caracterizar isso de resistência. Depois disso, fora obliterada. Sem câmeras de segurança, nada. Sumiu.

Hoje, as únicas marcas da existência de Herminiana haviam desaparecido. Não havia suspeitos, só as chamas que levantaram um dia naquele vale. Foi a última aparição da garota. Mesmo que achasse os assassinos, Cardoso sabia, dificilmente poderia provar sua culpa. A única coisa que poderia movê-lo, a essa altura, eram os olhos pesados de Dona Lurdes ainda densos em sua memória.

Uma denúncia anônima havia levado a polícia até o local das chamas. Para eles, só haviam desovado mais alguém. Mas, para Cardoso, essa era a única pista, esse alguém nos barracos devia ter visto algo mais além do fogo.

***

Naquele dia, Cardoso chegou em casa um pouco mais tarde. Célia não havia preparado um jantar, normalmente não preparava nada. Ela tinha o costume de comer um pãozinho, tomar um iogurte e assistir TV. De qualquer forma, ele estava sem fome.

"Como foi no trabalho? E a Dona Lurdes?"

"Arrasada. Quer que eu encontre os assassinos."

"E agora?"

"Preciso voltar nos barracos, ver se mais alguém sabe de alguma coisa."

"Cardoso, ninguém sabe de nada lá. Por que tu não dispensou a mulher?"

"Não sei, Célia."

Foi até a geladeira e tomou um gole de água. Encheu outro copo e levou até Célia.

"Obrigada."

De nada. A esposa tomou um gole.

"Meu amor, se tu não parar com essa investigação, o dinheiro dessa mulher acaba e nada de assassino."

"Eu sei. Só queria tentar mais um pouco. É difícil, sabe? Uma garota dessas, tão nova, e a Dona Lurdes... é tanta dor."

Célia baixou a cabeça, não concordava. Cardoso sentiu vontade de ir embora, porque a Célia tinha dessas e às vezes, quando tava ruim assim... sabe? Sei lá, ele tinha essa vontade. Mas sabia, lá dentro, que do mesmo jeito que não ia desistir da morta, não ia desistir da Célia. A vontade de ir era mais pra refrescar a cabeça, sair um pouco do meio das coisas, do meio da vida dele. Tanta gente morrendo, tanta gente traindo, e a Célia ali, assistindo TV, comendo pãozinho, querendo que ele voltasse pra casa já fazia vinte anos. Ele voltava. E lá vinha ela baixar a cabeça e discordar em silêncio. Aí é sacanagem.

"A dor não é tua, Cardoso. Sai dessa antes que isso vire contra ti."

"Tá, eu vou pensar nisso. Só me dá mais um tempo."

"Tu que sabe."

"Boa noite." - e levantou.

Ele sabia que não ia pegar no sono tão cedo. Sabia, também, que não ia embora.

***

Por enquanto é só. Vamos ver se a saga do Cardoso continua.

Um comentário:

  1. Muito bom o teu blog, escreves muito bem mesmo. Parabéns.

    :D li os mais antigos também, muito bons.

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