segunda-feira

Carta da Guerrilha

Querida Ana,

Hoje marchamos quinze quilômetros. Meus pés sangraram desde o quinto, mas não houve pausa o suficiente para que eu pudesse trocar as meias. O Rodrigo me admoestava a cada quinhentos metros por nomes, chamava-me de franguinho, de bucetinha, mas eu via que ele mesmo estava cansado. Comemos enquanto andávamos, limpamos as armas na chuva que caia e depois secâmo-las em com nossas próprias camisas torcidas pois alguém avistara uma patrulha.
Não houve muito tempo para a preparação. Um tiro logo espocou ao longe e nos engajamos. Ainda garoava e o lodaçal nos impedia de correr. As armas disparavam quando em muito e logo os homens se espetavam com as baionetas. O sangue corria diluido, como se não valesse muito. Rodrigo correu degolado a minha frente e ainda matou um cavalo. O homem montado quebrou a perna e mais tarde encontrei-o ainda sofregando um último respiro, parecia um porco tentando levantar o sabre. Eu procurava em meio as poças de sangue um dente meu, sei lá porquê. Um índio me disse que parasse pois já apagavam as fogueiras com medo de encontrar outra tropa. Os homens precisavam descansar.
Quando me dei por conta, olhava o teu retrato. Todos os outros dormem agora, mas eu entendi que precisava te escrever. Não sei se tem alguma coisa a ver com a batalha de hoje. Nem sei porque eu conto, devia mesmo era dormir. O sono não bateu e quando eu vi já acendia o lampião a procura da foto. Acho que procurava um abraço nela. Não tem nada, só teus olhos meio baços de choro, essa sobra de despedida. É mais uma lembrança das coisas que eu perdi, algo mais longe de casa, mais saudoso ainda. Mas não é tua culpa, é minha. Eu não entendia a saudade quando aceitei esse retrato, era só uma idéia longíqua disso de agora.
Acho que era nisso que eu pensava quando comecei a escrever. Eu matei um deles hoje, Ana. Abri o ventre dele e o vi cair de olhos arregalados sobre suas vísceras e de repente pensei que podia ser eu com as vísceras no chão, que por uma fração de tempo era eu mesmo no chão de olhos arregalados sem entender de onde tinham saído aqueles orgãos e a pressão baixando, meu sangue correndo e as lembranças de casa se apagando. Me deu um desespero porque eu não queria te esquecer, porque era como se tivesse algo naquela água que diluisse todos nós. Então agora pouco eu procurei tua foto e só achei tua despedida, mas eu preciso de algo de antes. Por isso eu queria te pedir pra procurar outra e me mandar, que essa aqui não serve. Essa só vai me trazer mais tristeza.

Com amor,
Do teu Ruas.

5 comentários:

  1. Ana ouviu o barulho das botas na lama e sobre as folhas secas, sentiu a dor nos pés esfolados, Ana viu os homens morrendo, viu um lampião sendo acendido e um homem bom olhando uma foto. lindíssimo.

    ResponderExcluir
  2. Forte e encantador. *-*

    ResponderExcluir
  3. O que sobre é um ideal de lembrança.

    ResponderExcluir
  4. Lucian1:02 AM

    muito bom, magrão.

    ResponderExcluir