Com o passar do tempo, Beto começou a achar que as pessoas confessavam coisas pra ele sem necessariamente ter intimidade suficiente pra isso. Talvez fosse só impressão, talvez fosse a bebida. A verdade é que beber ocupou uma boa parte da vida de Beto. As bizarrices que acontecem quando se bebe foram formando um bolo constituído de várias proto-experiências, semi-lembranças de coisas vergonhosas ou descabidas, memórias de um outro Beto, que apesar de não ser inteiramente outra pessoa, também não era inteiramente ele. Essa criatura do Meio, desfocada, habitava hoje as horas mortas que ele passava na cama, esperando o sono chegar.
Foi sentindo o peso da cabeça sobre o travesseiro que Beto lembrou de Luiza, os dois sentados sobre o muro, a música explodindo na casa atrás. Ela contou do seu irmão mais velho, que entrava no seu quarto à noite e tocava-a por baixo dos lençóis. Achava que era por isso que não gostava de meninos, mas era bem verdade que ela não precisava se justificar.
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Em Balneário, Beto passou um tempo com sua prima e o bebê, que já tava grande. Era a primeira vez que se viam pessoalmente: ele com o pé torcido, inchado dentro da bota; a criança babona num grande círculo de brinquedos e badulaques, acessórios, almofadinhas, cadeirinha vibratória. O moleque era sorridente, nunca chorava, reclamava pouco e parecia gostar de Beto. Ana recebeu-o como recebia todos, o que não era pouca coisa: café, três variedades de bolo, frutas, pães, chimia, sei lá, mil comidinhas.
“... então eu chutei a roda do caminhão pra não cair embaixo dele. Foi assim que eu torci o pé.”
Ana parecia ofendida.
“Beto, seu retardado! Tu vai matar a tua mãe do coração! O quê é que tu tem na cabeça?” - ambos tinham trinta anos.
Luís chegava a noite do trabalho e os três tomavam café juntos e conversavam. No tempo que ficou na casa de Ana, enquanto seu tornozelo voltava ao normal, os dois passavam o dia brincando com o bebê, cozinhando, cuidando das coisas da casa. Alimentavam a ideia de uma floreira com temperos. Foram à praia umas duas vezes, no fim de tarde. A sombra dos prédios caía sobre a faixa de areia, e os dois olhavam pro mar e pro bebê até quase dormirem. Ele não sabia muito como lidar com a criança, não concebia o propósito de falar com ele, mas achava que se entendiam bem pelo olhar. São essas as bobagens que passam pela cabeça de Beto.
Tudo era estrangeiro naqueles dias. A criança, o que Ana havia se tornado. Ainda reconhecia na prima a garota com quem havia crescido, mas tinham passado muito tempo longe um do outro. A vida tinha seguido caminhos diversos, e Ana tinha se transformado nessa pessoa pacata e íntegra que lhe causava orgulho. Ela sabia fazer comida e cuidar do moleque, dos horários dele, parecia estar preocupada o tempo todo e o tratava como o animal irresponsável que era. Intuiu que, se ficasse mais um pouco, Ana arranjaria um emprego e uma mulher com quem deveria casar.
Era hora de voltar pra estrada
Chovia na manhã que Beto se foi. O trecho era da BR-101 novamente. Ia fazer uma perna menor dessa vez, tinha se agasalhado direito e estava melhor protegido da chuva. Tudo transcorreu bem. No litoral sul de Santa Catarina, a estrada vivia margeada por plantações, principalmente de arroz. Formavam alagadiços enormes que se estendiam em direção ao horizonte e que o asfalto rasgava como uma agulha gigante que afinava no infinito, duas retas paralelas. Pipocavam postos, açougues, gigantes galinheiros, motéis, colinas, biroscas infestadas de cachaceiros. Resquícios de civilização que não afastavam a sensação de vazio, de espaço, como se a humanidade tentasse preencher todo o chão, mas sempre houvesse mais.
Parava de vez em quando pra tomar um cafézinho e ficar de bobeira. Por algum motivo subliminar, sempre escolhia uns postos meio escrotos. Numa dessas, tava comendo um mocotó quando uma mulher já senil e maluca, envolta em farrapos, tentava convencer um cachorro a lhe dar atenção. Esticava a mão em direção ao animal que, desconfiado, parecia esperar alguma comida e ao mesmo tempo refugava. Beto observou a cena por um tempo sem saber o que pensar. Pegou o último pedaço do mocotó e deu pro cachorro. Só assim a velha conseguiu dar um afago no bicho. Quando falava, ela lembrava o diabo da tasmania. Os dois riram juntos: ele da lembrança infantil e maldosa, a velha da própria loucura.
A estrada é um precipício.
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Luiza era filha única, não tinha irmãos. Morava com os pais num apartamento pequeno no Flamengo. Era uma vida estranha e amontoada, esperava mais da classe média. Corria pelo comprimento de suas costas uma cicatriz horrível. Beto não ficou tempo suficiente pra saber o porquê.
Luiza olhava pra Beto numa boate escura do Cidade Baixa. O álcool embotava seus olhos e ele a confundiu com uma garota por quem se apaixonara recentemente. Acordou a seu lado, o Cristo emoldurado desviava o olhar. Nunca descobriu o nome dela.
Luiza curtia sexo anal. Luiza não sabia chupar.
Luiza bebia pra caralho, tanto quanto ele, e os dois discutiam feio. Não sabiam porque brigavam, se esbofeteavam por nada e transavam depois.
Beto continuava insistindo, mas Luiza não queria voltar.
Beto socava uma parede, tropeçava em si mesmo. Sentia raiva, não sabia porque. Podia ter machucado alguém naquela noite. Tinha medo de ter machucado alguém naquela noite.
Sumia volta e meia. Encontrava algo na escuridão. Seus amigos ligavam preocupados.
Quando sentia saudades de Luiza, comia putas. Cheirava coca e transava com elas até amanhecer, jogava dinheiro fora. Brochava. Conversava com elas, nunca lembrava sobre o quê. E Beto olhava-as como um animal confuso, um alienígena que não tinha respostas. Ele olhava pra elas e não via nada que não fosse um enigma.
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Pouco antes de entrar em Araranguá, estacionou a moto ao largo da estrada, próximo a grande rótula na entrada da cidade. Já não chovia mais. Olhou pro hotel Becker, pra churrascaria Espetão. Reconhecia o cheiro da carne, a poeira, os carros e seus motoristas, esse jeito de se dirigir do interior. Tudo havia ficado ali, não exatamente do mesmo jeito, mas a essência era a mesma. Beto já não era mais o homem que havia crescido naquelas ruas, e não podia deixar de ver o passado quando olhava pra dentro da cidade, mesmo sabendo não ser mais a mesma. Tudo que havia se perdido ou mudado ainda estava lá, pro lado de dentro dos seus olhos. Sentia um frio na barriga.
Estava de volta em casa.