segunda-feira

Vontades e saudades

Não fui eu quem escolheu o Maranhão, ou a Itália, os Países Baixos. Não fui eu quem construiu o muro, a casa, os tijolos eu não assei. Também não me podem culpar pelo Golfo, Panamá, Polônia ou coisa que valha. Tudo já estava assim quando eu cheguei, e não pretendo mudar, não, de forma alguma. Encho os cornos de cachaça e deixe estar.

Escolhi fumar porque não queria morrer num acidente de carro. Não dirijo, afinal, bebo. Tudo bem, eu explico. Os médicos, inimigos de tudo que vale à pena em demasia (a saber, alguns: açúcar, sal, álcool, maconha, adrenalina, gordura....), decidiram pesquisar os malefícios do cigarro só pra apertar ainda mais o cinto. Dizem, eu não conheço direito os números, dizem que, digamos, 70% dos casos de câncer de pulmão são fumantes. Isso, em nenhum nível, prova que cigarros causam câncer, mas uma incrível coincidência estatística. Portanto, aproveitando-se da inocência dos leigos, de umas duas décadas pra cá, fizeram uma campanha mundial contra o fumo. Reduziram os fumantes e os casos de câncer no pulmão. Pronto, agora eles têm a prova. Por outro lado, nunca esteve tão na moda morrer bêbado num carro (os paulistas adoram). As pessoas sempre acham uma saída, mas, no meu caso, sempre fui old fashioned.

Acendo um cigarro, Priscila me olha como se fôssemos fuder com a vida um do outro qualquer dia desses. Essa garota não devia pintar os cabelos, de forma alguma. Loiro é tão vulgar quanto uma saia jeans – das pequenas. Prefiro nem olhar quando cruza as pernas.

“Cê anda muito calado.”

“Quando sento, começo a pensar.”– Raul Seixas já dizia que quem pensa, pensa melhor parado –“Não é de bom tom falar de todas as merdas que passam pela minha cabeça.”

“Quer ficar sozinho com teus pensamentos?” – irônica, sempre com esse sorrisinho.

Tenho saudade, de vez em quando, de quando eu era sincero. Acho que foi lá pelos seis anos a última vez, no colégio. Assisti muito esses desenhos e, de uma forma ou de outra, sempre tem uma princesa e um herói. São histórias de amor, já parou pra pensar? Caí nessa ondinha. Como qual? Essa ondinha de amor. Era muito inocente na época, continuo sendo. Ela era loirinha, me liguei agora! Deixei de gostar de loiras nessa ocasião. Não tinha olhos azuis, mas era loira. Comia brigadeiro no lanche. Perguntei:

“Me dá um pedaço?” – um conquistador precoce.

“Tó.”

“Hmm. Sua mãe que fez?” – o gênio do sex appeal.

“Uhum.”

“Sabe, acho que te amo.” – a certeza é a chave, elas gostam de homens decididos.

“Eu não gosto de você.”

Descobri, então, que a sinceridade doía. Hoje, só sussurro amores pros meus cigarros, pra que eles logo queimem e apaguem.

“Vou embora.”

“Priscila, meu bem, eu te ligo amanhã.”

Priscila

Beijei-a como quem beija um tubo, um cano, uma laranja. Já não sinto mais nada, nem por ela, nem por mim. Onde foi que eu deixei meu amor próprio? Onde, meu Deus, quando eu deixei de amar? Priscila há muito tempo deixou de ser especial, banalizou-se completamente com o passar do tempo pra se tornar esse tubo que beijo com tanto ardor agora, me agarrando nela como se nas lembranças de quando eu ainda me sentia bem.

Finjo querer estar com ela aqui, finjo bem. Mas, na verdade, planejo como sair sem parecer grosso ou idiota. No final, não quero magoá-la, sempre fui um covarde. Eu não vou voltar, nunca mais, vou virar as costas e sair pra não ter que olhar na cara dela de novo.

“Tu tá estranho.”

“Senti saudade, tu demorou lá.”

“Era um congresso, demorei o que tinha que demorar. Mas também senti saudade.”

Mentira, ela não sentiu, dá pra ver. É melhor que não sinta. Olho pro lado pra não ter que continuar encarando. Eu devo ser muito volúvel.

Por que ela simplesmente não some?

“Tu continua estranho.”

Outro beijo. Cala a boca, Priscila, cala a boca e me beija. Vou procurar com a língua algo que tinha aí, devia estar entre as tuas amídalas. Eu costumava gostar de curtir assim, de beijar alguém por beijar, devia ser algo nas amídalas das pessoas. Mas as amídalas de Priscila secaram num congresso do outro lado do país, eu já não posso encontrar mais nada.

“Nossa, isso sim parece saudade. Vamos lá comer alguma coisa?”

“Tô sem fome. Priscila, querida, vou ter que ir pra casa, preciso terminar meus trabalhos, tu sabe.”

“Vamos, a gente come uma coisinha e tu pode ir pra casa pra te enfurnar no teu computador.”

“Sério, deixei um monte de coisa pra te encontrar aqui, agora eu preciso voltar.”

“Pô, só mais um tempinho! A gente não se vê já faz duas semanas!”

“Eu não te amo, Priscila.”

“Hahaha, seu idiota. Vamos lá.”

“O que tu quer comer?”

“Pode ser um cachorro quente.”

“Tá, mas tu paga a coca.”

Misógino

Foi naquela noite que eu o conheci. Meio magricela, fraquinho, mas ainda assim bonito. Entendam bem, já tinha ficado com outros, falo com certa propriedade. Acho que ele fazia meu tipo, apesar do porte. Eu não tenho muitos escrúpulos quanto a essas coisas de “tipo”, por isso digo que acho. Era bonitinho, mas é difícil alguém realmente feio aos vinte anos. Essa é outra coisa que eu acho.

Estávamos cercados de gente, ele podia sentir vergonha, mas eu encarava mesmo assim. Acabei acreditando que ele queria mesmo. Nesses momentos críticos, de tomar a decisão, é sempre aí que eu resvalo e começo a divagar. Fiquei pensando em ficar e toda essa bobagem que passa na televisão sobre pessoas que tu conhece e a efemeridade dos sentimentos envolvidos, do quão rasos nós acabamos sendo. É claro que essa opinião é baseada numa moral caduca e blá, blá, blá, quando o cara já tinha sumido por aí.

Não, peraí, tinha uma dúvida de verdade, qual era? ... depois de muito olhar pr’aquela cara magra, o que mesmo tinha despertado essa vontade? Quando tu te pergunta essas coisas significa que já passou a vontade, não é mesmo? Agora que ele tinha sumido, isso parecia tão irrelevante. Toda a construção da troca de olhares ruíra com sua breve ausência pra se reerguer quando ele voltou. Já chegou conversando comigo, com aquele sorriso besta. Eu odeio quando as coisas começam a ficar muito óbvias porque elas perdem tudo que tinham de surpreendente e novo.

De qualquer forma, como eu não esperava que ele já viesse assim, direto pra mim como que numa bandeja, fiquei. E foi bom, não dá pra negar, mas sempre falta alguma coisa. Acho que a culpa é minha, não me deixo envolver e tal, acabo nem conhecendo as pessoas com quem eu fico. Isso tira um pouco da graça, ou toda. Foi assim que, de repente, ele foi embora sem nome.