domingo

O corredor polonês

Beto acelera, cento e vinte quilômetros por hora numa via de sessenta. A moto esgoelando, gritando alto, sofrendo. A rua acaba, o barulho acaba, o espaço, o tempo, lágrimas brotam dos seus olhos e ele agora atravessa o vazio, o vento, a chuva gotejando fininho, embotando o visor do capacete. O corpo voa solto no ar, mas não vai acabar aqui. Tem sempre alguém refazendo peças, costurando a pele, remontando o que tá quebrado. Beto não vai morrer porque não dá, alguém vai repor as costelas e o farol, o velocímetro e o maxilar, lavar o asfalto e catar os dentes espalhados no chão. E amanhã, amanhã é segunda-feira. Domingo é só um empecilho, sonho e desejo esmagados em quarenta e oito horas.

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Lá pelo quilômetro duzentos e trinta da Tamoios existe um depressão entre duas colinas onde uma casinha de madeira descansa placidamente frente a um lago que eu suponho artificial. Quem me deu a dica foi uma senhorinha mineira cujo quiosque localiza-se no trezentos e onde ela não cobra o café doce que oferece aos viajantes. Atrás do quiosque, vaquinhas pastam e uma estradinha de chão serpenteia em direção a casa onde ela mora. Faz parecer que não é São Paulo, que as cidades acabaram ou não tem motivo de ser. O sotaque de Minas ajuda.
Beto leva quase uma hora pra atravessar os setenta quilômetros que separam os dois pontos, porque fez questão de comprar uma motinho de merda pra viajar. Por toda a extensão da faixa de rodagem, a moto tateia e resvala nos vincos e relevos como se lesse algo em braile. O vento infla a jaqueta meio aberta, fazendo Beto engordar uns quilos. Tá sol, a sensação geral é de uma vibezinha boa. Nessas horas, Beto pensa que dava pra fazer só isso da vida, rodar até os dedos ficarem dormentes. Aí ele podia soltar aos pouquinhos o acelerador fazendo com que a moto desacelerasse lentamente em direção ao acostamento e, se bobear, dormir ali mesmo encima dela.
O moço dá umas piradas de vez em quando. O que importa é que ele chega naquela depressão entre as duas colinas e decide parar pra esticar os membros, estralar os dedos e comer umas bolachinhas. Nesse meio tempo, fica olhando pra essa coisa bucólica que tem na sua frente. Já é outono, vai começar a esfriar, e a pastagem tá meio dourada, meio verde, tem umas paradinhas roxas na ponta de um mato alto. A paleta tá bonita. Depois de esconder a moto atrás de uns arbustos, ele pula a cerca e vai dar na casinha, bate umas palmas, coisa e tal. Ninguém atende. Quando entra na água, ela tá quentinha do sol que rolou o dia todo. O chão é bem lodoso, mesmo assim dava pra morar no lago, dava pra esquecer tudo ali mesmo. Em seguida, ele já não liga que a propriedade não é dele e deita na relva pra cochilar. Passagem de tempo.

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Toda vez que cai um poste, estoura um cano. Toda vez que um pneu fura, engrenagens encavalam e um dente se solta. Mas existe uma força centrípeta, uma máquina que gira e faz as coisas caírem de volta no lugar, cheia de mãos e olhos, chaves dentadas, cartilagens e roldanas, cheia de brio e inteligência, criatividade pra fazer parar de quebrar. Ela caminha na borda de um abismo cujo fundo não dá pra ver, mas acredita-se que lá embaixo mora a selvageria cuja voragem quer engolir o mundo. Dentro de casa, com as luzes apagadas, ás vezes dá uma vertigem que vem daí.

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Beto acorda aos pouquinhos, levanta a cabeça e a moto ainda tá lá. Um cachorro late e ali pelo umbral da porta um gaúcho toma chimarrão. Nosso protagonista põe o que faltava de roupa e se aproxima, sente sede. Valadares, que um dia foi brigadiano e já não sabe mais como veio parar em São Paulo, sorve os últimos goles de mate e enche novamente a cuia. Uma cadeirinha já aguardava Beto, que senta.

"Buenas?"

"Desculpa invadir aqui, mas tava muito bonito."

"Ah, volta e meia acontece. Quem bagunça eu meto bala, mas tu tava comportadinho. Não gosto de ser mal anfitrião."

"Isso aqui é teu?"

"Não, nem sei de quem é. Cerquei e fui ficando, não vieram reclamar. Aquela moto é tua?"

"É."

"Tu viaja nessa merda?"

"Viajo."

"Tu vai te matar nisso daí."

E foram conversando. Mas, sabe, nem tem muita importância, porque quando Beto chuta o pedal de partida, a moto volta a roncar e retorna resfolegando pra estrada, as partes inchando novamente com o calor, doloridas e dormentes. O farol iluminava poucos metros a frente, a oitenta quilômetros por hora não daria pra parar, não podia mais parar. A escuridão aumentava por minuto e já as colinas eram massas que riscavam linhas no azul cada vez mais negro do céu. Abaixo delas, uma pequena faixa de asfalto parecia puxar as rodas pra frente, em direção ao nada. O mundo virava aos poucos um abismo.